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Estado de Minas LITERATURA

Ensaios lançam luz sobre livros de Murilo Mendes e Maria José de Queiroz

Lançamentos de Filipe Menezes e Maria Silvia Duarte Guimarães oferecem outro olhar sobre 'Poliedro' e 'Como me contaram: fábulas historiais'


18/10/2021 04:00 - atualizado 18/10/2021 07:30

Ilustração mostra homem saindo da página de um livro
(foto: Fernando Lopes/CB/D.A Press)

"A zoologia metafísica de Murilo Mendes está calcada na influência surrealista. Os animais, os monstros e objetos animados de 'Poliedro' são desenhados, em sua maioria, a partir dessa estética" "Maria José de Queiroz compõe, a partir de Minas, como uma atenta cartógrafa, um mapa ficcional em que cidades reais podem se mesclar ou se deixar enevoar por cidades ficcionais ou invisíveis"


Lançada pela Caravana Grupo Editorial, a Coleção Libertas é dedicada à publicação de ensaios sobre literatura, cinema, fotografia, teatro, música e televisão. Entre os títulos já editados estão “A literatura encarcerada”, de Maria José de Queiroz, e “Línguas em trânsito”, de Lyslei Nascimento e Neide Nagae.

Agora, vêm à lume dois novos livros: “Animais biográficos: um estudo de 'Poliedro', de Murilo Mendes” e “Tecer o visível e entretecer o invisível: cidades invisíveis em Italo Calvino e Maria José de Queiroz”, ambos resultantes de dissertações de mestrado defendidas junto ao Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob a orientação de Lyslei Nascimento.

ANIMAIS BIOGRÁFICOS

O primeiro ensaio é de autoria de Filipe Menezes, mestre em letras pela UFMG, mestre em administração pública pela Fundação João Pinheiro e, atualmente, doutorando em letras e estudos literários pela UFMG. Uma das epígrafes, assinada em 1956 por Eduardo Frieiro, situa devidamente o tema: “Os animais na literatura são velhos como a própria literatura”.

Motivado por essa reflexão, o pesquisador optou por começar a sua investigação pelos registros mais antigos a respeito dos bichos. Em suas incursões pelas primeiras fontes, chegou a Aristóteles, a Plínio, o Velho, e a Claudius Aelianus, referências incontornáveis para todos os estudos que, posteriormente, pretenderam nomear e classificar animais.

Identificando as variadas influências sofridas, ao longo dos séculos, pelos que escreveram sobre o assunto, Menezes mostra como a ciência, a religião e a mitologia se encontram em tais trabalhos, a eles conferindo uma inegável proximidade com a literatura de ficção.

BESTIÁRIO 

Principal precursor do gênero “bestiário”, largamente difundido na Idade Média, “Physiologus”, de origem desconhecida, fazia algumas descrições legendárias de animais e foi amplamente utilizado com a finalidade de ensinar teologia e moral, tendo na “Bíblia” uma de suas inspirações principais.

Os bestiários são considerados versões adaptadas do “Physiologus”, mas acolhem e recombinam contribuições de procedências diversas. Como ressalta Menezes, “com o passar do tempo, os verbetes foram reinventados, sendo revistos e adaptados por vários autores, dando origem a outros textos nos quais os animais ocupam outros contextos. Nestes, a vida dos animais e suas características e hábitos reinscrevem conteúdos variados, diferentes da ênfase na moral e na religião”.

Já os chamados “zoológicos textuais”, como explica o autor, “carregam um complexo sistema semântico, com algumas características trazidas dos zo-  ológicos reais, como os sentidos de reclusão dos animais e o domínio do homem sobre eles, o autoespelhar do visitante nos animais expostos em suas jaulas ou simulacros de hábitat, a intenção de divertir e, em alguns textos mais recentes, o afã de educar e se preocupar com a conservação do meio ambiente. Os zoológicos textuais, assim, são metáforas dos bestiários, recriados para absorver os variados significados que carregam os zoológicos e aquários reais”.

É a Jorge Luis Borges que Menezes recorre para abordar como a literatura moderna e contemporânea apresenta os animais. Guiado pelo escritor argentino, o ensaísta visita Emanuel Swedenborg, Franz Kafka, Lewis Caroll, Edgar Allan Poe, Max Brod e H. G. Wells.

O primeiro brasileiro mencionado é o poeta Sérgio de Castro Pinto, que assina o “Zoo imaginário” (Escrituras, 2006). Murilo Mendes aparece em seguida, como alguém em cuja obra se pode descortinar um “pequeno zoológico pessoal” e sobre quem Menezes escreve: “Seus animais, assim, são insólitos. Alguns pertencem à sua memória de infância, outros apenas às suas divagações. Eles são distantes, alguns nem têm corpos”.

LEGADO 

Decidido a percorrer exaustivamente a obra do escritor juiz-forano, Menezes repassa, um a um, os seus livros na busca da presença dos animais e de sua significação em seu legado literário, para logo concluir: “Eles são seres insólitos, com raras caracterizações físicas, mas, sobretudo, oníricas e surrealistas – são animais metaforizados. Os seres imaginários ou mitológicos presentes (...) são combinações de animais reais com uma zoologia dos sonhos”.

É em “Poliedro” (José Olympio Editora, 1972), no entanto, que Menezes detém sua atenção, a ele dedicando um capítulo exclusivo, para apontar, inicialmente, que “essa zoologia metafísica de Mendes está calcada na influência surrealista. Os animais, os monstros e objetos animados de 'Poliedro' são desenhados, em sua maioria, a partir dessa estética”.

Quando alude aos verbetes criados por Murilo Mendes no “Setor microzoo”, o autor destaca que eles “apropriam-se da imagem do animal, ser real, físico, palpável, para interpor questionamentos e concluir por meio de aforismos, questões metafísicas ou outras relativas a preocupações filosófico-religiosas do poeta”.

Em seção posterior, Menezes identifica, finalmente, um segundo grupo de verbetes, parecidos com o primeiro, mas portadores de diferença fundamental: a presença de traços biográficos do poeta, o que autoriza o autor a cunhar, a respeito, a expressão “animais biográficos”.

Pesquisa meticulosa, o empreendimento de Menezes é aporte valioso à fortuna crítica da obra muriliana. Atento e perspicaz, o autor entrega ao público um repertório altamente qualificado sobre a relação entre a obra do poeta e os animais. Em linguagem clara e precisa, sem recurso ao hermetismo ou à empolação, conduz os leitores a um agradável e produtivo passeio pelos livros do poeta juiz-forano, renovando a admiração geral pelo que ele foi capaz de construir.

ENTRETECER O INVISÍVEL

O segundo lançamento da Coleção Libertas é assinado por Maria Silvia Duarte Guimarães. Já na introdução, é mais uma vez a epígrafe a chave adequada para a leitura do trabalho da autora: “A palavra associa o traço visível à coisa invisível, à coisa ausente, à coisa desejada ou temida, como uma frágil passarela improvisada sobre o abismo” (Italo Calvino).

Assumindo desde logo as cidades como o ponto principal de sua pesquisa, a ensaísta se interessa pelo discurso que as constrói, o que, segundo ela, possibilita diversas interpretações, dependendo de quem é o leitor. Em sua investigação, selecionou dois autores – Italo Calvino e Maria José de Queiroz – para compreender como cada um lança frágil passarela entre o visível e o invisível.

Citando a crítica que identifica o escritor italiano como alguém que dedicou sua obra a “ensinar a cidade”, Maria Silvia estabelece, aí, a primeira relação entre ele e a acadêmica mineira, que igualmente pode ser considerada “mestra de Minas Gerais”.

CARTOGRAFIAS 

Esse exercício de aproximação entre os dois escritores permeará o trabalho da pesquisadora, sempre preocupada em apurar o modo como cada um inscreve as cidades no território ficcional, o que acaba erguendo “cartografias imaginárias”, “que, simultaneamente, aparentam tocar o real e o ficcional, como se descrevessem o movimento de um pêndulo”.

No exame de “As cidades invisíveis” (Companhia das Letras, 2011), Maria Silvia reflete sobre como, no romance, se dá a elaboração ficcional do espaço, detectando alguns efeitos da comunicação entre Marco Polo e Kublai Khan, quando o viajante descreve ao imperador os lugares por ele visitados. A ambiguidade é um desses efeitos, inevitável quando a interação entre os dois se dá, majoritariamente, por meio de “gestos, saltos, gritos de maravilha e de horror, latidos e vozes de animais”.

Polo lida, de forma clara, com a ideia de que as cidades do império são possíveis, imaginadas ou sonhadas. Bem cuidado, o trabalho menciona cada uma das localidades por ele referidas, com ênfase no modo como ele as comenta, em narrativas estruturadas pelo princípio da imaginação: “(...) as descrições do viajante são ambíguas, voláteis, compostas por palavras, mas também por gestos e objetos, e as cidades que descreve existem e não existem na ficção”.

Para a ensaísta, “a literatura de Calvino parte do mundo para chegar à escrita e da escrita para alcançar a realidade. É nesse ponto de fronteira, limiar entre o escrito e o não escrito, que o escritor pressiona a ponta de sua caneta e com ela traça os contornos de seu mundo ficcional, buscando encontrar, com isso, o desconhecido e o indizível. Assim, Calvino escreve sobre o que há do outro lado das palavras, sobre o que quer ‘sair’ do silêncio, significar através da linguagem, como que dando golpes em um muro de prisão”.

MINAS  

No estudo de “Como me contaram: fábulas historiais” (Imprensa Publicações, 1973), coletânea de textos de diferentes gêneros, Maria Silvia identifica logo o território de Minas Gerais como protagonista, no enredo em que a realidade e a ficção se confundem, no que Calvino chamaria de encontro entre o mundo escrito e o não escrito. Para a pesquisadora, a escritora mineira compõe, a partir de Minas, como uma atenta cartógrafa, um mapa ficcional em que “cidades reais podem se mesclar ou se deixar enevoar por cidades ficcionais ou invisíveis”.

Assim como o escritor italiano, Maria José de Queiroz realiza, segundo Maria Silvia, “um trabalho fabulatório que consiste em entrecruzar história e ficção, em uma tentativa de reconstruir o passado histórico de Minas Gerais e da América Latina”.

Entre as principais reflexões propostas pela pesquisadora no ensaio está a de que “uma cidade não é, portanto, feita apenas do ‘material concreto’ que a sustenta, que pode ser sentido ou tocado, ou contrário, cada uma delas carrega uma carga invisível, que pode ser composta pela memória, pelos desejos ou pela imaginação de seus habitantes”. Em suas conclusões, Maria Silvia ressalta que os mapas ficcionais por ela analisados representam cartografias imaginárias que, no ato da escrita e da leitura, se afirmam como infinitas, tantas são as possibilidades que levantam.

COMPOSIÇÃO 

Rigoroso, o percurso trilhado por Maria Silvia permite ao leitor descobrir o quanto as obras de Italo Calvino e de Maria José de Queiroz se relacionam, e o quanto é rico o trabalho de composição literária a que os dois se lançam, com o talento por todos reconhecido. Em estilo leve, fluido e agradável, sem abrir mão, em nenhum instante, da complexidade do raciocínio requerido pelo seu trabalho, a autora brinda o público com uma contribuição de grande valor para o campo de sua eleição.

Assim, por tudo o que já foi dito, a Coleção Libertas se firma como o repositório adequado das melhores investigações acadêmicas empreendidas nas áreas por ela abrangidas, dando à sociedade a oportunidade de conhecer o alto nível dos pesquisadores atualmente formados pela universidade brasileira, patrimônio de que jamais abriremos mão.

*Rogério Faria Tavares é jornalista, doutor em literatura e presidente da Academia Mineira de Letras

'ANIMAIS BIOGRÁFICOS: UM ESTUDO DE 'POLIEDRO', DE MURILO MENDES

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• De Filipe Menezes
• Grupo Editorial
• 180 páginas
•  R$ 49,90
• Contato: caravanagrupoeditorial.com.br
'TECER O VISÍVEL E ENTRETECER O INVISÍVEL: CIDADES INVISÍVEIS EM ITALO CALVINO E MARIA JOSÉ DE QUEIROZ'
(foto: Fotos: Caravana/reprodução)

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