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Estado de Minas TELEVISÃO

"Nos tempos do imperador" é acusada de reforçar o racismo estrutural

Especialistas criticam novela por romantizar a escravidão, retratar os negros de forma preconceituosa e insistir em fórmulas ultrapassadas para abordar o tema


15/09/2021 04:00 - atualizado 15/09/2021 07:51

Cena de racismo reverso envolvendo Samuel (Michel Gomes) e Pilar (Gabriela Medvedovski) causou pedido de desculpas da novelista Thereza Falcão
Cena de racismo reverso envolvendo Samuel (Michel Gomes) e Pilar (Gabriela Medvedovski) causou pedido de desculpas da novelista Thereza Falcão (foto: Globo/reprodução)

A telenovela “Nos tempos do imperador” é a primeira produção do gênero realizada pela Globo depois do início da pandemia de COVID-19. O que seria a retomada de um dos principais produtos do audiovisual brasileiro tomou alguns caminhos polêmicos.

Romantização da escravidão, a forma como o movimento abolicionista é apresentado e a cena que sugeriu racismo reverso são pontos do enredo que têm desagradado não só ao movimento negro, como aos historiadores e até mesmo ao cineasta Joel Zito Araújo, um dos principais pesquisadores da representação do negro nas telenovelas brasileiras, que dirigiu o documentário “A negação do Brasil” (2000).

Ambientado em 1856, o enredo traz como cenário o Brasil escravocrata do Segundo Reinado, governado por dom Pedro II. Escrita por Alessandro Marson e e Thereza Falcão, a novela tem como uma de suas protagonistas a personagem Pilar (Gabriela Medvedovski), mulher branca que sonha se tornar médica e se apaixona por Samuel (Michel Gomes), homem negro que trocou sua identidade para fugir da escravidão.

(foto: Tapiri/divulgação)

"Não há nenhuma surpresa para mim. A maior surpresa é a repetição desse padrão em décadas e mais décadas. Desde os anos 1970, com 'Escrava Isaura', uma das novelas inaugurais sobre os temas de escravidão, não vejo nenhuma inovação"

Joel Zito Araújo, cineasta e pesquisador


PEQUENA ÁFRICA 

A principal polêmica é sobre a cena que reforça a ideia de racismo reverso. Samuel fica indignado com a rejeição de Pilar na Pequena África, região do Rio de Janeiro ocupada por negros livres. Ao tentar morar lá, a personagem teria sido vítima de racismo por ser branca. Esse diálogo repercutiu e acabou gerando pedido de desculpas por parte da autora Thereza Falcão, que lamentou o ocorrido.

O cineasta e pesquisador Joel Zito destaca a fórmula já ultrapassada de novelas de época como um dos principais problemas da trama, que não retrata os negros em relação de prestígio. Para ele, a telenovela é mais uma repetição de outras produções já realizadas no país.

“Não há nenhuma surpresa para mim. A maior surpresa é a repetição desse padrão em décadas e mais décadas. Desde os anos 1970, com ‘Escrava Isaura’, uma das novelas inaugurais sobre os temas de escravidão, não vejo nenhuma inovação”, comenta.

Joel Zito também destaca como esse cenário cria consequências para o país e para a sociedade negra, contribuindo para manter a situação da população branca no poder.

Juliana Pereira, integrante do grupo Historiadorxs Negrxs e idealizadora do podcast Atlântico Negro, diz que, inicialmente, a proposta da novela despertou seu interesse em acompanhar os capítulos. A historiadora diz que houve a tentativa de construir um cenário diferente e positivo sobre a população negra, mas muitos detalhes e situações nesse sentido foram deixados de lado pela produção.

“Pensei que seria diferente da representação típica da escravidão que geralmente acompanha as obras de ficção. No início, você não via os cativos à sombra dos heróis, ou simplesmente como cativos sem ter uma fala”, diz Juliana.

SOMBRA 

A historiadora comenta que personagens negros são sempre vistos à sombra dos brancos. A relação do casal Pilar e Samuel pode ser entendida dessa forma. Juliana vê nos dois a figura da heroína branca e do homem negro a ser salvo. “Tenho achado muito problemática a forma como acontece a relação entre dois personagens principais da novela”, afirma.

Para Juliana, a relação do casal é muito romantizada. No período retratado, uma mulher branca da alta sociedade não poderia ter relacionamento público com um homem negro, sendo aceita e respeitada. “Essas cenas acabam virando verdade absoluta em uma sociedade em que as pessoas ainda têm poucas informações sobre a escravidão” destaca Juliana.

Joel Zito chama a atenção para a forma como o movimento abolicionista é abordado. Para o cineasta, essa luta foi realizada e liderada pelo povo negro. Personagens importantes da história nem sequer foram citados na trama da telenovela, que dá espaço principal aos negros retratados como submissos

“Naquele período final da escravidão, já havia uma elite intelectual e econômica negra, como os irmãos Rebouças, por exemplo”, diz Joel, que critica o equívoco de representação dos personagens negros. O cineasta se refere a Antônio e André Rebouças, os primeiros engenheiros negros do Brasil, que desenvolveram importantes trabalhos no Paraná e no Rio de Janeiro.

CAMINHOS

 Juliana Pereira afirma que a perspectiva negra positiva tem, sim, possibilidade de ser utilizada por produções televisivas caso optem por investir em outras histórias, com personagens negros mais ativos, apresentando formas diversas de se expressar e de se organizar.

Para Joel Zito, as desigualdades socioeconômicas enfrentadas pelos negros são reforçadas por produtos midiáticos que os retratam nessa situação.

De acordo com o cineasta, ter pensamento contemporâneo e mais atual é fundamental para romper com a repetição e reduzir erros de representação. Joel cita como exemplo disso plataformas de streaming que abordam a diversidade racial em suas produções e a tornam realidade em suas equipes.


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