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Os mitos de Antígona e Cassandra se tornaram desenhos de Nuno Ramos

Inspirado pelas figuras da mitologia grega, o artista criou as obras reunidas na exposição 'Thoughts of dust', em cartaz na galeria Celma Albuquerque 


15/05/2021 04:00 - atualizado 15/05/2021 08:04

Para o artista, ''Cassandra traz a ideia da voz, de adivinhar o futuro, enquanto a Antígona traz a ideia de querer esconder algo do mundo, colocar debaixo da terra''(foto: ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A PRESS)
Para o artista, ''Cassandra traz a ideia da voz, de adivinhar o futuro, enquanto a Antígona traz a ideia de querer esconder algo do mundo, colocar debaixo da terra'' (foto: ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A PRESS)

Duas figuras mitológicas que pelas diferenças entre si tornam-se complementares são parte da discussão proposta por Nuno Ramos na exposição “Thoughts of dust”. Em cartaz na Celma Albuquerque Galeria de Arte, a mostra reúne desenhos recentes produzidos entre o final do ano passado e o início deste, que têm os mitos de Antígona e Cassandra como fonte.

“Venho mantendo temas antigos. Cassandra traz a ideia da voz, de adivinhar o futuro, enquanto a Antígona traz a ideia de querer esconder algo do mundo, colocar debaixo da terra”, comenta o artista. O título da mostra remete aos “pensamentos de poeira” desta última, filha de Édipo e Jocasta, que quer enterrar o irmão, Polinice, desafiando uma ordem do rei, Creonte, que determinou que o corpo ficasse inse- pulto. A tragédia é inevitável.

“A Antígona queria cobrir o corpo e meus desenhos têm algo disso. Foram feitos de carvão em pó, pó de grafite, pó do chão do ateliê. Há um pouco de tinta, mas é quase insignificante, pois o que busco é um certo arrastar do pó, tentando fazer a fusão entre forma e conteúdo”, explica Ramos.

Também escritor, dramaturgo e músico, Nuno Ramos acredita que o tempo do desenho é outro. “Cada coisa tem suas regras. Venho desenhando há muitos anos e são obras razoavelmente rápidas, ao contrário da pintura. Quando monto um sistema, eles tendem a sair mais rapidamente”, diz.

''A questão não é bem a pandemia, acho que estamos vivendo uma fusão político-viral. É um filme de terror. Se tivéssemos uma administração boa, não digo boa, mas normal... A pandemia parece ter acelerado um projeto de morte, o sequestro do país por um projeto político de potência destrutiva inédita. Na verdade, hoje somos governados por um miliciano desqualificado, cujo maior discurso político foi o negacionismo''

Nuno Ramos, artista


VÍDEO

Em uma “conversa” com o trabalho atual, a exposição ainda apresenta uma obra antiga do artista, o vídeo “Luz negra” (2002), realizado com Eduardo Climachauska. Com duração de 10 minutos, o trabalho mostra, em um extenso espaço de terra, grandes caixas de som sendo enterradas. Enquanto são cobertas por terra, ouve-se a canção “Juízo final”, de e com Nelson Cavaquinho.

“O Nelson é um sambista pessimista, fala de morte e luto, e é atualíssimo hoje. O que me atraiu nela foi a questão do enterro, de botar debaixo da terra. Você ouve a música e ela sai abafada pelas camadas de terra, o que remete ao pensamento do pó, da poeira”, explica.

“Thoughts of dust” é a terceira individual de Nuno Ramos na Celma Albuquerque. E a primeira com trabalhos de pequeno porte. Em 2012, o artista realizou uma de suas instalações mais impactantes. Em “Ai, pareciam eternas! (3 lamas)”, ele quebrou todo o espaço térreo da galeria para receber, em escala real, as três casas de sua vida (da infância, dos avós e de um antigo ateliê). Os “imóveis”, produzidos de materiais diversos, eram tomados pela lama.

Já em 2016, ele realizou uma segunda exposição na galeria na Savassi. Na época, apresentou cinco obras de grandes dimensões, trabalhos em que utilizou técnicas e materiais diversos,  como cera de abelha, pigmentos, tecidos, plásticos e chapas de metal. 

As obras da exposição em BH foram produzidas entre o final de 2020 e o início deste ano. ''Cada coisa tem suas regras. Venho desenhando há muitos anos e são obras razoavelmente rápidas, ao contrário da pintura'', diz o artista(foto: ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A PRESS)
As obras da exposição em BH foram produzidas entre o final de 2020 e o início deste ano. ''Cada coisa tem suas regras. Venho desenhando há muitos anos e são obras razoavelmente rápidas, ao contrário da pintura'', diz o artista (foto: ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A PRESS)

PERFORMANCE

Recém-vacinado, Ramos, de 61 anos, tem trabalhado intensamente durante a pandemia. Está preparando duas performances, uma em São Paulo e outra em Porto Alegre, e lança, também neste ano, o livro, “Fooquedeu”, pela Editora Todavia. “É resultado de um diário crítico que publiquei por dois anos, 2016 e 2017, na revista Piauí. Ia ser lançado ano passado, mas foi adiado e acabei atualizando. Traz um pouco de diário, pequenos ensaios, devaneios e muitos comentários sobre a vida política.”

Para ele, que a partir de junho de 2020 passou a trabalhar “mais do que antes”, o trabalho é uma forma de reação. “A questão não é bem a pandemia, acho que estamos vivendo uma fusão político-viral. É um filme de terror. Se tivéssemos uma administração boa, não digo boa, mas normal... A pandemia parece ter acelerado um projeto de morte, o sequestro do país por um projeto político de potência destrutiva inédita. Na verdade, hoje somos governados por um miliciano desqualificado, cujo maior discurso político foi o negacionismo.”

Na opinião do artista, estamos todos presos em um loop, “um pesadelo do qual não conseguimos acordar.” A função do artista neste momento, segundo ele, é estar em movimento. “Não é hora de fazer obra-prima, mas sim o que se dá conta pelas próprias dificuldades e pelo absurdo do cotidiano. É saber jogar mesmo em condições muito adversas.”

Na primeira fase da pandemia, ele ficou sozinho em seu ateliê. Mais recentemente, já envolvido com performances que têm uma relação com o teatro, passou a se encontrar com outros artistas. Em junho, vai apresentar no Instituto Ling, em Porto Alegre, performance que mistura transmissão ao vivo de vozes com interpretação. Outra prevista para São Paulo ele mantém em segredo.

“Eu vou a Porto Alegre e não se sabe como a cidade estará no período (com atividades culturais abertas ou fechadas). Achamos que terá pouco público, mas, se não tiver, montamos um filme depois, fazemos um curta, retomamos presencialmente. Acho que temos que fazer o que dá, é como o título do livro, ‘Fooquedeu’. Se tiver 10 pessoas no público, é melhor que não ter; se forem 20, melhor que 10. Temos que dignificar o ato de fazer arte. Performance é vida; teatro é vida.”

Para Ramos, as transmissões on-line de produções artísticas de diferentes naturezas são uma “realidade diminuída” do ato artístico. “Mas essa realidade ainda é muito, já que vivemos em um momento de dissolução, de inesgotabilidade do pior. Nosso único modo de reagir é fazendo.”

Ele admite sentir uma urgência em produzir. A política acaba influenciando, mesmo que não diretamente, em suas obras. “Não quer dizer que vou voltar aos anos 1960 e fazer um espelhamento (da realidade). Mas meu trabalho vem caminhando nesse lado (político), associado a temas como a violência. Acho que cada um reage a seu modo.” 

Para Ramos, o importante é fazer. “A arte é um lugar de regras próprias e temos que exercer isso. Conectar-se com os outros, mesmo que com menos dinheiro, chamar outras linguagens. É a arte que faz o meio de campo para a vida possível.”

THOUGHTS OF DUST
Exposição de Nuno Ramos. Em cartaz na Celma Albuquerque Galeria de Arte, Rua Antônio de Albuquerque, 885, Savassi, (31) 3227-6494. Visitação de segunda a sexta, das 10h às 19h; sábados, das 10h às 13h30. Até 5 de junho.


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