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Estado de Minas LITERATURA

Escritora que viveu nas ruas transforma sua história num romance

Clarice Fortunato lança 'Da vida nas ruas ao teto dos livros', em que conta sua experiência com a miséria e sua obstinação por estudar


23/08/2020 04:00 - atualizado 22/08/2020 22:29

(foto: Mônica Ramalho/Divulgação)
(foto: Mônica Ramalho/Divulgação)

"Escrevi sobre alguém que todo mundo pensava que não ia ser 'ninguém' na vida e, fazendo esse movimento, trago comigo uma ancestralidade inegável e inerente à minha história e posição na sociedade"

Clarice Fortunato, escritora

No ensaio Um teto todo seu (Editora Tordesilhas, 2014), a célebre escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941) reflete acerca da presença feminina na literatura – ou a falta dela. No texto, ela pontua: “Uma mulher, se quiser escrever, precisa ter dinheiro e um teto só seu”.

Transportar essa máxima para o contexto brasileiro implica ter que superar uma série de empecilhos conjunturais, ainda mais quando se trata de uma mulher negra, de origem humilde, que conseguiu quebrar o ciclo de extrema pobreza de sua família e se tornou doutora em literatura.

Um percurso possível, mas longe de ser fácil, como revelam as páginas de Da vida nas ruas ao teto dos livros (Pallas Editora), livro que marca a estreia da escritora paranaense Clarice Fortunato.

Professora e pesquisadora, ela contornou uma série de adversidades pessoais, até chegar à Inglaterra, em 2015, para concluir a etapa estrangeira de seu doutorado, classificado como sanduíche no jargão da academia. 

Na época, Clarice estava determinada a pesquisar o universo de Gabriela, cravo e canela, romance de Jorge Amado publicado em 1958. Contudo, o distanciamento provocado pela vida num país estrangeiro fez com que ela desenvolvesse o ímpeto de estudar a própria história.

VOZES 
“Sempre que me pediam para contar a história da minha vida, eu paralisava. Ficava realmente mal. Quando estava na Inglaterra, vozes dentro de mim diziam para eu escrevê-la, colocá-la no mundo. Depois de enviar um e-mail para [a jornalista e escritora] Denise Paraná perguntando o que ela achava da ideia, cheguei à conclusão de que só conseguiria me livrar dessas vozes colocando essa história no papel'', conta a escritora.

Inspirada em trabalhos como Sinfonia em branco (Alfaguara/Objetiva), de Adriana Lisboa, e A chave de casa (Record), de Tatiana Levy, Clarice decidiu que o resultado do exercício de escrita seria defendido como sua tese de doutorado, o que explica a presença de teóricos como Walter Benjamin (1892-1940) e Michel Foucault (1926-1984) nas epígrafes dos capítulos.

O resultado, porém, foge de padrões acadêmicos e se mostra como uma revisão dos 43 anos da autora, que, em diversos momentos, dá a impressão de simplesmente conversar com o leitor. Ao longo de 120 páginas, o livro se revela uma autobiografia romanceada de quem vivenciou os dissabores da miséria e do racismo.

“Escrevi sobre alguém que todo mundo pensava que não ia ser 'ninguém' na vida e, fazendo esse movimento, trago comigo uma ancestralidade inegável e inerente à minha história e posição na sociedade”, diz. “É como escreveu Conceição Evaristo: 'A minha voz recolhe as vozes da minha bisavó, da minha avó e da minha mãe; e de todas essas vozes negras se fará ouvir a ressonância'”.

Dessa forma, a história de Clarice Fortunato reflete, infelizmente, a realidade de muitas brasileiras. Filha de pai negro, analfabeto, e mãe branca de olhos azuis que lia o básico e sabia apenas assinar o próprio nome, ela nasceu no interior do Paraná. O casal formado sem a aprovação da família materna trouxe ao mundo 17 filhos.

Sete deles morreram muito cedo de doenças desconhecidas e 10 chegaram à idade adulta. Clarice é a única, até onde se sabe, com ensino superior. Mas cresceu sem pai, que foi embora quando ela tinha 5 anos.

PERIGO 
“Mulheres silenciadas, sozinhas, no escuro sempre correram perigo”, analisa a autora. “Precisamos juntar as vozes do passado e presente para que se possa romper com essas dores que se repetem, como um ciclo vicioso, e nos matam por dentro, impedindo-nos de ser inteiras.” 

Hoje professora em Santa Catarina, onde mora, ela trabalhou como babá desde a infância. Na adolescência, foi funcionária de uma fábrica de calçados, faxineira, empregada doméstica e também babá. Determinada a estudar, ela cursou letras na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Estudei com a mesma disciplina e obstinação de um soldado que se prepara para uma guerra. Respirava livros”, relembra.

Em uma das passagens mais comoventes do livro, ela comenta sobre o tempo em que esteve em situação de rua, destacando essa como uma das lembranças mais difíceis de lidar.

“Vivíamos em situação de extrema vulnerabilidade. Além disso, era doloroso perceber que a nossa presença mendiga despertava nas pessoas mais medo do que compaixão. Mesmo na impossibilidade de rememorar com detalhes o que vivi nas ruas, é impossível esquecer o que senti nos dias mais miseráveis de nossa vida”, escreve, no capítulo intitulado Nós, moradores de rua: vida às margens.

Ainda assim, a autora avalia que, ao final da escrita, conseguiu ressignificar a relação com o próprio passado. “Quando a gente carrega um fardo, a melhor forma de lidar com ele é transformá-lo em algo que vai impactar a vida de outras pessoas. E eu espero que esse livro reverbere dessa forma.”

Para ela, que dedica o trabalho à vereadora assassinada Marielle Franco (1979-2018) e à escritora Maria Carolina de Jesus (1914-1977), o atual momento político que o país atravessa é delicado, e publicar o livro nesse contexto, é significativo.

“Gosto de fazer uma pontuação bastante clara: não podemos nos calar diante de um Estado que quer nos silenciar. Não vamos voltar para a senzala. Temos direitos e nossa voz está aí e vai ecoar.”


Trecho

A felicidade de um teto despertou o sonho de estudar. Olhava a vizinha de uniforme, indo para a escola, e via-me no lugar dela. Agora eu quase podia tocar o meu sonho: eu tinha um lar e podia, enfim, estudar! Convenci mamãe e fomos nos informar dos trâmites burocráticos. Para fazer a matrícula, era preciso o registro de nascimento, que eu ainda não tinha. No cartório, eu mesma declarei a maioria das informações sobre o meu nascimento, já que minha mãe não lembrava com clareza desses dados. Feito o documento, fui matriculada, pela primeira vez, numa escola. Eu me sentia transbordar de contentamento pela perspectiva de aprender a ler e escrever. Assim, comecei a me adaptar a uma nova rotina, alternando, no período matutino, a escola e, no vespertino, as tarefas domésticas: cozinhar, lavar roupas, limpar a casa e cuidar da minha mãe. Foi então que recebemos a visita inesperada da minha irmã mais velha. Eu me perguntava: mas por que ela apareceu só agora que já estamos instaladas? Seria por que ela soube que minha mãe estava aposentada? Deliberadamente, ela decidiu levar-nos para morar com ela, numa zona rural da cidade de Guairaçá. O lado bom da mudança foi nos livrarmos do meu padrasto, já que ele não estava em casa quando saímos. Por outro lado, onde fomos morar não havia escola, para a minha frustração. E eu voltei a imitar as outras crianças estudando porque sentia falta de estudar. 

DA VIDA NAS RUAS AO TETO DOS LIVROS
Clarice Fortunato
Pallas Editora
R$ 40


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