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Estado de Minas

Após restauração, Serro vai exibir véus cercados de mistério na Igreja Católica

As Sibilas Diamantinas são tecidos pintados sobre linho e algodão para cobrir os altares dos templos durante a quaresma, uma tradição pagã incorporada pelo catolicismo


postado em 15/03/2020 04:00 / atualizado em 15/03/2020 10:57

O Laboratório de Ciência da Conservação da UFMG foi responsável pelo trabalho de recuperação dos véus quaresmais(foto: FOTOS: BERNARDO MAGALHÃES/DIVULGAÇÃO)
O Laboratório de Ciência da Conservação da UFMG foi responsável pelo trabalho de recuperação dos véus quaresmais (foto: FOTOS: BERNARDO MAGALHÃES/DIVULGAÇÃO)
A preservação ilumina a cultura de Minas e, sob o véu do tempo, traz descobertas fascinantes para o olhar de moradores, visitantes e demais interessados nos tesouros históricos do estado. Quem passar a Semana Santa no Serro, no Vale do Jequitinhonha, poderá conhecer parte de um conjunto artístico único no mundo, pertencente à igreja Nossa Senhora do Rosário, no distrito de São Gonçalo do Rio das Pedras, e alvo de um ano de restauração.

São as Sibilas ou véus quaresmais – tecidos pintados sobre linho e algodão, nos séculos 18 e 19, usados para cobrir os altares dos templos católicos durante a quaresma. “Vamos expor as peças (de 5/4 a 12/4), mas nosso objetivo, para este ano, é mandar colocá-las em molduras, com um tipo de proteção que permita a exposição permanente na igreja”, informa o titular da Paróquia São Gonçalo do Rio das Pedras, padre Kennedy Mendes Alves.

Ao longo do tempo, os véus quaresmais ficavam enrolados e guardados na igreja, o que causou problemas ao material, daí a necessidade de maior proteção. Em São Gonçalo do Rio das Pedras, distante 16 quilômetros da sede municipal, o ato de colocar os tecidos roxos na frente das imagens, tradição católica, tem características muito próprias.

Padre Kennedy explica que, no quinto domingo (este ano, o próximo dia 29) ocorre o “ritual de velação” para cobrir os retábulos, enquanto na maioria das igrejas vai da quarta-feira de cinzas até a quinta-feira santa, quando começa o tríduo pascal.

As duas peças da igreja Nossa Senhora do Rosário, junto a duas similares de Diamantina, também no Vale do Jequitinhonha, estiveram recentemente na mostra Sibilas do Tijuco – Apresentação do restauro dos véus quaresmais, no Teatro Municipal Santa Izabel, de Diamantina. A cidade completou duas décadas do título de Patrimônio da Humanidade, em 1º de dezembro passado.
Objetivo da paróquia à qual pertencem as peças é emoldurá-las para garantir melhor preservação
Objetivo da paróquia à qual pertencem as peças é emoldurá-las para garantir melhor preservação

RESTAURO 
Na igreja Nossa Senhora do Rosário, em São Gonçalo do Rio das Pedras, os véus quaresmais são usados desde o século 19, sem interrupção. Com 3 metros por 2 m, em algodão, datam de 1869, enquanto os de Diamantina, em linho, com 3 m por 4 m, de 1799.

“Os do Serro só ficaram fora do altar no ano passado, devido à restauração”, diz a coordenadora do projeto e professora de história da arte da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Maria Cláudia Orlando Magnani, destacando que, no conjunto, há mais quatro para restauro.

Logo depois da exposição, as peças da Igreja das Mercês, pertencentes à Arquidiocese de Diamantina, foram entregues ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e há plano “de criação do Museu Arquidiocesano do Palácio Episcopal”, adianta o arcebispo metropolitano, dom Darci José Nicioli. A assessoria da autarquia federal informa que os dois véus quaresmais ficarão, por enquanto, em seu escritório técnico, na cidade.

Segundo a professora Maria Cláudia, as sibilas de Diamantina e Serro têm importância universal e reafirmam a sobrevivência de um mito antigo incorporado pela Igreja Católica desde os primórdios – vale frisar que, apenas quando envolvem as sibilas, os véus do Jequitinhonha são únicos no mundo.

Conforme as pesquisas, as sibilas ou profetisas estão entre os mitos que tiveram alcance temporal longo e sobrevivência em muitos e distintos espaços, não sendo, portanto, tarefa simples deslindar o caminho percorrido entre esse mito pagão e sua incorporação pelo cristianismo. Com o primeiro registro na Babilônia, as profetisas sobreviveram na mitologia grega e romana como figuras ligadas ao deus Apolo e depois incorporadas pelo judaísmo, pela Igreja Católica Romana e também pela Ortodoxa.

Os véus com os desenhos das profetisas foram usados nas igrejas católicas até o Concílio Vaticano II (1962-1965), sendo, então, substituídos pelos tecidos ou cortinas roxas que se veem a partir da quarta-feira de cinzas cobrindo os altares. “Muitos se perderam, outros ficaram destruídos, uns até queimados” diz Maria Cláudia, que pesquisa o assunto há 10 anos, incluindo estudos no exterior.
Sibilas foram incorporadas do paganismo à tradição católica
Sibilas foram incorporadas do paganismo à tradição católica

SIGNIFICADO 
De acordo com a Arquidiocese de Diamantina, a presença das sibilas nos templos católicos está intimamente ligada à sobrevivência de outros elementos pagãos no cristianismo, como a astrologia e os símbolos do zodíaco, e elas foram legitimadas pela teologia católica como profetisas inspiradas pelo Espírito Santo. Em número de 12 a partir do século 15, são definidas como as Sibilas da Paixão (que anunciam o nascimento, a vida, a paixão, a morte e a ressurreição de Cristo) e as do Apocalipse, “que anunciam o fim do mundo, com o juízo final”.

Somente na Itália, há mais de 600 ocorrências de sibilas em diferentes linguagens artísticas: afrescos, esculturas, relevos, tapeçarias, pinturas em tecido, pinturas de cavalete. “Há também incontáveis iluminuras e gravuras que não podem ser esquecidas”, diz o arcebispo metropolitano de Diamantina, dom Darci José Nicioli.

As representações se estendem da Rússia à América Latina e da antiguidade ao século 20. Dom Darci joga luz sobre o tema: “O que fazem as profetisas pagãs na Igreja Católica? As sibilas permaneceram como a questão humana mais ampla de orientação espiritual em face do universo. São atemporais e se encontram em toda parte, enquanto elemento humano universal, assim como a pergunta que nos guia pela história desde tempos imemoriais: de onde viemos e para onde vamos?”

O arcebispo diz ainda que a restauração das Sibilas Diamantinas também se insere neste mistério mais amplo, presente nos vários “panos de altar” e no teto da capela-mor da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim da cidade que, nos primórdios, se chamava Arraial do Tijuco. “Restaurar tais obras significa possibilitar a contemplação, uma experiência mística: provocar o olhar da fé que inspirou seus autores a enxergar muito além do que os olhos podem ver e a vã razão compreender”.

O restauro ficou a cargo das especialistas Amanda Cordeiro e Patrícia Reis, com análises científicas do professor Luiz Souza, do Laboratório de Ciência da Conservação (Lacicor/Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais-EBA/UFMG), e participação dos estagiários (alunos do seminário Arquidiocesano Sagrado Coração de Jesus de Diamantina e do curso de restauração de bens culturais móveis da UFMG)

ETAPAS 
O restauro dos véus quaresmais partiu da iniciativa do Instituto Diarte, com projeto aprovado pelo Fundo Estadual de Cultura da Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais e apoio institucional da Mitra Arquidiocesana de Diamantina e do Iphan. A intervenção (restauro e conservação) compreendeu etapas de documentação fotográfica, testes de solidez dos corantes, higienização, limpeza, planificação, consolidação do suporte e apresentação estética, proposta de sistema de acondicionamento e exposição, que tem curadoria de Bernardo Magalhães, Maria Cláudia Orlando Magnani e Instituto de Arte e Cultura de Diamantina (Diarte).











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