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Estado de Minas

Trabalhando memórias e escombros, mineira Jeane Terra expõe em Turim

Ouro das igrejas barrocas faz parte de 'Escavação capilar', instalação apresentada no Museu Ettore Fico. Assistente de Adriana Varejão, artista iniciou sua carreira em BH


postado em 01/02/2020 04:00 / atualizado em 31/01/2020 16:52

O ouro das igrejas barrocas de Minas está presente na instalação Escavação capilar, que Jeane Terra expõe na Itália(foto: Letícia Cunha/divulgação)
O ouro das igrejas barrocas de Minas está presente na instalação Escavação capilar, que Jeane Terra expõe na Itália (foto: Letícia Cunha/divulgação)
É a memória que norteia o trabalho da artista mineira Jeane Terra. O ouro das igrejas barrocas que ela frequentava na infância está presente na instalação Escavação capilar, criada para a exposição Focus sell'arte brasiliana contemporanea, em cartaz até 16 de fevereiro no Museu Ettore Fico, em Turim. Escombros da casa de sua família em Belo Horizonte foram utilizados anteriormente em objetos escultóricos. E os pontos de cruz que ela, quando criança, observava a avó bordar serviram como referência para um tipo de pintura que Jeane vem pesquisando há dois anos.

“Hoje, me considero uma garimpeira de memórias”, afirma a artista, de 45 anos. Nascida em Mercês, Zona da Mata, criada em BH e radicada no Rio de Janeiro, Jeane é assistente da pintora Adriana Varejão. Ela considera 2019 um divisor de águas em sua trajetória. Foram cinco exposições no ano que passou, incluindo a coletiva italiana, que reuniu obras de 23 artistas brasileiros – Cildo Meireles, Ernesto Neto, Cinthia Marcelle e a própria Varejão entre eles.

O ano que está começando não deve ser diferente. Em março, Jeane abre uma individual, ocupando os dois andares da Simone Cadinelli Arte Contemporânea, galeria em Ipanema que passou a representá-la em 2019. Essa mostra terá curadoria de Agnaldo Farias. Os trabalhos vão tratar da memória de uma cidade do interior do Rio de Janeiro, que vem sendo apagada. Já a coletiva de junho será na Villa Aymoré, no Bairro da Glória, reunindo apenas artistas mulheres com trabalhos inspirados em histórias de mães que perderam os filhos para balas perdidas.

A perda é algo com que Jeane teve de aprender a lidar de maneira brusca. “Perdi minha mãe de câncer de mama quando ela tinha 50 anos. Dois meses depois, minha irmã, meu cunhado e minha sobrinha morreram em um acidente de carro no carnaval. Tive de me reinventar, pois tinha perdido as pessoas que mais amava na vida em apenas dois meses. Vi que a memória é onde habitam as coisas mais importantes”, comenta ela.

Com a morte do pai, anos mais tarde, a residência da família no Caiçara, em BH, foi vendida para dar lugar a um prédio. Ao desmontar a casa antes da demolição, Jeane recolheu objetos caros à sua história e à de sua família. Entre eles estava o projetor do pai, usado posteriormente na instalação com uma ampulheta que guarda, como pó, os escombros triturados do antigo lar. “A projeção da imagem da casa foi uma forma de fazer com que ela não deixe de existir”, comenta Jeane sobre a série.

OURO

Pedaços dos escombros foram cobertos com folha de ouro e outros materiais, como pelúcia. Esses primeiros trabalhos sobre o apagamento levaram Jeane a se aprofundar na questão. “Por que não contar a história de outras casas? Hoje, quando fico sabendo da demolição de alguma residência, vou lá pegar um pedaço, tento descobrir a história do lugar”, conta.

Neste mês, quando a coletiva de Turim terminar, a instalação de Jeane também acabará. “Esse trabalho só vai existir na memória de quem o viu”, conta. Escavação capilar teve sua primeira versão no início de 2019, quando Jeane a apresentou no projeto Abre alas, na galeria A Gentil Carioca – o evento anual é uma espécie de salão, sempre na época do carnaval, exibindo trabalhos de novos artistas.

Trata-se de um trabalho de escavação, em que a artista refaz na parede o percurso dela para chegar até o lugar onde criou a obra. “Fui no Google Maps e fiz o trajeto da minha casa, na Gávea, passando pelo meu ateliê, em Laranjeiras, até chegar à Gentil Carioca, no Centro. Com o trajeto desenhado, projeto-o na parede. Com talhadeiras, escavo na parede. E depois vou folheando o percurso a ouro”, explica.

O ouro remete ao impacto que ela sentiu quando esteve com a mãe pela primeira vez na Igreja Nossa Senhora do Carmo, em Ouro Preto. “Achava que era ouro mesmo. Quando cresci, descobri que era folheada. Transferi o impacto do que senti para o percurso”, revela.

Pois o colecionador italiano Ernesto Esposito conheceu o trabalho d'A Gentil Carioca e resolveu levá-lo para a mostra em Turim. Jeane criou a segunda versão de Escavação capilar, desta vez perfazendo o trajeto que teve como início a galeria no Rio. De lá, o trajeto, passando pelo Aeroporto do Galeão, incluiu a rota do avião até Turim e o aeroporto da cidade italiana até chegar ao museu onde a obra ficou exposta. “Tenho vontade de seguir com esse trabalho a vida inteira”, diz Jeane. A próxima versão, quando vier, terá como ponto de partida o museu italiano.

Antigo projetor do pai da artista integrou instalação (foto: Jeane Terra/divulgação )
Antigo projetor do pai da artista integrou instalação (foto: Jeane Terra/divulgação )


''Tive de me reinventar, pois tinha perdido as pessoas que mais amava na vida em apenas dois meses. Vi que a memória é onde habitam as coisas mais importantes''

Jeane Terra, artista plástica



MURILO RUBIÃO

Em Belo Horizonte, Jeane participou de exposições no início de sua carreira. Integrou a coletiva Arca muriliana (2006), mostra no Palácio das Artes inspirada na obra do escritor Murilo Rubião. Na mesma época, fez sua primeira individual, Ardor, na Galeria de Arte Sesiminas. Sua mais recente participação em uma exposição belo-horizontina ocorreu em 2009, numa coletiva da Galeria Rhys Mendes.

Ainda que tenha iniciado seus estudos em Belo Horizonte – entre 2005 e 2006, cursou o bacharelado em artes plásticas na Escola Guignard –, Jeane considera a Escola de Artes Visuais do Parque Lage o centro de sua formação. Foi aluna do escocês Charles Watson, antigo professor de Adriana Varejão. As duas se conheceram em Inhotim, na época em que a artista carioca era casada com Bernardo Paz, fundador do instituto em Brumadinho.

“Ficamos amigas e quando ela voltou para o Rio de Janeiro, eu já estava ficava meio no Rio, meio em BH”, conta Jeane, que soma 10 anos ao lado de Varejão. “É muito rico trabalhar com ela, tanto intelectualmente, pois temos muitas afinidades, como também por causa da amizade.”

Desde que a carreira de Jeane decolou, ela reduziu o ritmo no ateliê de Adriana Varejão. “Quando estou produzindo minhas exposições, tenho de me afastar um pouco. Hoje estou dividindo melhor o tempo”, finaliza ela.

Pontos de cruz serviram de inspiração para pintura(foto: Jeane Terra/divulgação )
Pontos de cruz serviram de inspiração para pintura (foto: Jeane Terra/divulgação )


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