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A TODA TRAVESSIA

Companhia das Letras lança edição de Grande sertão: veredas recheada de ensaios, cronologia, fotos e as cartas que mostram Fernando Sabino e Clarice Lispector apaixonando-se pela obra-prima de Guimarães Rosa


postado em 24/02/2019 05:09



“Diz-que direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na ideia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois.”

Assim como na relação que ata a história de Riobaldo à de Diadorim, é um amor “maior que o miúdo” que une os leitores de João Guimarães Rosa (1908-1967) à obra-prima do escritor mineiro, Grande sertão: veredas. Para os atuais e os futuros amantes desse livro publicado originalmente em 1956, é de aquecer o coração a nova edição da obra que a Companhia das Letras deposita nas livrarias brasileiras nesta segunda-feira (25).

Entre os apêndices ao texto de Rosa, estão as cartas trocadas entre Fernando Sabino e Clarice Lispector com suas primeiras impressões do livro. Em julho, mês do lançamento, do Rio de Janeiro, Sabino escreve: “Estou na metade e é obra de gênio, não deixo por menos. Adeus, literatura nordestina de cangaço, zélins, gracilianos e bagaceiras: o homem é um monstro para escrever sobre jagunços do interior de Minas e com linguagem que nem Gil Vicente, nem ninguém. Se recebeu, leia – senão, me diga que mando”.

Verdade

Cinco meses mais tarde, Clarice, de Washington, responde: “Estou até tola. A linguagem dele, tão perfeita também de entonação, é diretamente entendida pela linguagem íntima da gente – e nesse sentido ele mais que inventou, ele descobriu, ou melhor, inventou a verdade. Que mais se pode querer? Fico até aflita de tanto gostar”.

1956 foi também o ano em que Sabino lançou seu Encontro marcado, como observa Silviano Santiago no artigo Cabo das tormentas, uma das cinco análises de aspectos do Grande sertão incluídas nesta edição. Santiago esmiúça a recepção imediata da obra – com ênfase nos que desgostaram – e seu impacto no cenário literário brasileiro. Coteja, ainda, as características do Grande sertão com a marca desenvolvimentista da arquitetura de Brasília e o tom suave da bossa nova, duas expressões incontornáveis daqueles anos 1950 no Brasil.

“O monstro de Guimarães Rosa nada tem a ver com o singelo, doce e nostálgico balanço da bossa-nova que, tão cool quanto o jazz moderno que o adjetivo inglês qualifica tão bem, assalta as estações de rádio e o mercado fonográfico das capitais em busca de um mercado internacional adocicado pelo bem-estar alcançado no pós-guerra pelas sociedades do Primeiro Mundo. Para as imaginações ilustradas e bem pensantes, Grande sertão: veredas é ácido, corrosivo e principalmente intempestivo. Ao se distanciar do ‘barquinho a deslizar no macio azul do mar’ (Roberto Menescal), dispensa todo e qualquer antídoto contra os absurdos retóricos de que se faz campeão absoluto na avara e impecável língua gramatical de Luís de Camões, Machado de Assis e Graciliano Ramos”, assinala o escritor.

Roberto Schwarz (Grante sertão: a fala), Walnice Nogueira Galvão (O certo no incerto: o pactário), Benedito Nunes (A matéria vertente) e Davi Arrigucci Jr. (O mundo misturado) são os autores dos demais quatro artigos, com a ausência sentida, em nota do editor, de O sertão e o mundo, de Antonio Cândido – uma das 44 sugestões de leitura incluídas no volume. De acordo com a assessoria da Companhia das Letras, a editora “não obteve autorização em tempo da publicação, infelizmente”.

Em sua exegese da linguagem do Grante sertão, Schwarz afasta a ideia equivocada de que “Guimarães Rosa busca sua riqueza expressiva no simples complicar de regras dadas” e demonstra como o autor alcança o “lirismo” por meio da “libertação do vocábulo”.

A partir da história de Maria Mutema, conto que “surge como peça estranha” num “romance tão cerrado”, Walnice Nogueira Galvão também faz uma reflexão sobre o uso da palavra por Rosa. “A palavra pode matar, mas também pode redimir; pode ser um meio de minar a certeza e criar novamente a incerteza, refazendo ao contrário o processo anterior. A esperança está em quebrar a coisa que está dentro da outra, admitindo-se que dentro da coisa internada pode haver uma abertura, nas palavras de Riobaldo: “Mas liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões”.

Em sua “abordagem filosófica de Grande sertão: veredas”, Benedito Nunes nota que “diante de fontes tão diversas, embora equilibradas em suas tendências espiritualistas comuns, o neoplatonismo é apenas uma rubrica genérica da visão do mundo de Guimarães Rosa”. Nunes voltará à influência de Platão na análise da questão da memória no romance.

“A anamnese platônica, que se transferiu à doutrina de Santo Agostinho, tem como limite a reminiscência, interno aposento dos palácios da memória de que nos fala o santo doutor em suas Confissões, e que são os de Riobaldo, ‘aonde o demônio não consegue espaço de entrar’. ‘No coração da gente, é o que estou figurando. Meu sertão, meu regozijo!’ À reminiscência, que isentaria a alma dos transtornos da mudança, reconduzindo-a, de acordo com o neoplatonismo, à sua verdadeira origem, opõe-se a sucessão dos atos que configuram o Destino, na medida em que formam o passado”, observa o ensaísta.

Começo tardio


Em seu abrangente artigo, publicado originalmente em 1994 pelo Cebrap, Davi Arrigucci Jr. aborda com perspicácia a desorientação em que o início da narrativa projeta – e em alguns casos afugenta – o leitor. “A história que afinal acabamos de ler em Grande sertão: veredas não preenche todo o livro. É uma história de aventura – de violência, amor e morte – extraordinariamente atraente e impositiva, capaz de envolver por completo o leitor. Tarda, no entanto, a começar, como se nos jogasse primeiro numa espécie de limbo ou de labirinto liminar, entre fios entrecruzados, antes de definir o rumo.”

Arrigucci Jr. anota que “todo motivo retardante deve ser considerado épico, como lembrava a seu tempo Goethe, na correspondência com Schiller. Aqui não é diferente. Embora comece in medias res, a ação central de que tratará o livro principia por negaceios, avanços e recuos, demorando, até se mostrar sobranceira e dominadora sobre os continhos todos que a fala de Riobaldo vai fiando em meio à glosa das preocupações com o demo”.

Ou, como Fernando Sabino comenta com Clarice Lispector, “no princípio, dez primeiras páginas, é meio assim-assim, custa um pouco a engrenar, mas de repente a gente se embala no ritmo dele e não larga mais”. Nunca mais.


Dados biográficos revelam "ucidez e angústia"

Um dos méritos da nova edição de Grande sertão: veredas pela Companhia das Letras é a biografia resumida do autor – com os fatos mais relevantes listados ano a ano, desde o seu nascimento, em 1908, em Cordisburgo. Ao lado da trajetória estudantil e profissional (como médico, diplomata e escritor), da vida familiar (casamentos e filhos) e dos constantes estudos literários e de línguas estrangeiras, há registros da correspondência de Rosa com o pai, uma das irmãs, com amigos e com seus tradutores.

Essa seção traz, ainda, informações recolhidas de entrevistas que concedeu. E assim fica-se sabendo quais são as mais bonitas palavras da língua portuguesa, segundo Rosa – 1. Alegria; 2. Alma; 3. Primavera; 4. Querência; 5. Floresta; 6. Sota-vento; 7. Dar; 8. Rutilar; 9. Saudade; 10. Vaga-lume. Ou seus 10 poetas favoritos: “1. Alphonsus de Guimaraens; 2. Augusto dos Anjos; 3. Augusto Frederico Schmidt; 4. Castro Alves; 5. Cecília Meireles; 6. Cruz e Sousa; 7. Manuel Bandeira; 8. Olavo Bilac; 9. Pereira da Silva; 10. Vicente de Carvalho. Não incluo Carlos Drummond de Andrade para evitar acumulação: deixo-o para os ‘Dez maiores prosadores’. Carlos Drummond é, a meu ver, o maior dominador do idioma”.

A “Cronologia” traz também certas definições que o autor faz de si mesmo (“Sou essencialmente um homem do sertão”)  e de sua literatura: “Todos os meus livros são simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é a chamada ‘realidade’, que é a gente mesmo, o mundo, a vida”.

ESPÍRITO SEM CORPO

Em carta a Azeredo da Silveira, relata a conclusão de Grande sertão: veredas: “Passei três dias e duas noites trabalhando sem interrupção, sem dormir, sem tirar a roupa, sem ver cama: foi uma verdadeira experiência transpsíquica, estranha, sei lá, eu me sentia um espírito sem corpo, pairante, levitando, desencartando – só lucidez e angústia”.

Ao pai, a quem quase 10 anos antes pedira, em cartas-questionário, informações sobre aspectos do sertão (“Uma expressão, cantiga ou frase, legítima, original, com a força de verdade e autenticidade, que vem da origem, é como uma pedrinha de ouro, com valor enorme”) escreve contando que o lançamento de Grande sertão provocou “uma barulhada tremenda”.

A seleção de imagens (oito) começa com um retrato do autor, ainda bebê, ao lado dos pais, e termina com Rosa descendo as escadas da Academia Brasileira de Letras, no ensaio de sua posse longamente adiada. Além desses, há registros do escritor e de Aracy, sua mulher, Ara, com alguns dos gatos persas que o casal criava, e flagrantes de Rosa captados por O Cruzeiro no final da excursão de 1952 pelo sertão mineiro, fundamental para a escrita do livro.

Em 1938, Guimarães Rosa é designado cônsul-adjunto em Hamburgo, na Alemanha. Em maio daquele ano, começa a escrever um diário. “Desse diário de 208 páginas, que permanece inédito, sobrevive uma cópia arquivada na UFMG”, lê-se na “Cronologia”. O Estado de Minas consultou o diário e conta a história dele nas páginas 4 e 5 deste caderno.

Grande sertão: veredas


. Guimarães Rosa
. Companhia das Letras
. 560 págs
. R$ 84,90


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