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Estado de Minas O FEMININO REPRESENTADO NOS SAPATOS

Mais do que proteção e moda, o calçado carrega toda uma simbologia

Sapato revela status, atitudes, preferências sexuais e até posições políticas, como mostra instalação de designer mineira no Rio


postado em 05/02/2020 11:30 / atualizado em 05/02/2020 11:31

(foto: Cromium Fotografia/Divulgação)
(foto: Cromium Fotografia/Divulgação)

Mulheres e sapatos têm uma relação intrínseca, que faz parte da essência. Ainda que incompreensível para alguns. Desde que surgiram, quando o homem sentiu necessidade de proteger os pés, até se apresentar como diferenciação de classes sociais, entrar para a história, no século 18, como a paixão da rainha Maria Antonieta chegar ao Brasil com a vinda da corte de dom João VI, em 1808, e ser produzido em larga escala, desde então o sapato revela status, atitudes, preferências sexuais, valores artísticos e estéticos e até posições políticas. Não é só moda, não é só design, não é só proteção, não é só necessário. É tudo isso, além de ser, por que não, panfletário, empoderado, mandando recados!

E quando quem se propõe a criá-los tem na veia a assinatura autoral, cada par de sapatos certamente carregará toda essa história, esse poder. Assim são os designs de Virgínia Barros, que é gaúcha, mas foi criada em Minas Gerais. Formada em jornalismo, cursou estilismo na UFMG, onde mais tarde foi professora de desenho e história do calçado. Ela se identifica como sapateira, já que a criação e a execução do calçado são o foco do seu trabalho, embora desenhe roupas e faça figurinos.
 
Até 16 de fevereiro, no foyer do teatro Firjan Sesi Centro, no Rio de Janeiro, onde ocorre a temporada do Auto de João da Cruz, de Ariano Suasssuna, com a Cia. Omondé, direção de Inez Viana – o texto conta a história de um jovem que decide deixar tudo para trás em busca de riquezas –, a sapateira brinda o público com a instalação O que nós, mulheres, queremos?. Um manifesto feminista.

“Na história do calçado, os homens são os protagonistas da criação, salvo raras exceções. São homens fazendo sapatos para agradar a homens. O escarpim de salto fino resiste 70 anos sem nunca ter deixado de ser produzido. Entra moda, sai moda, ele está no mercado. Será o motivo o fato de ser símbolo do fetiche masculinopensando? além do patriarcado, o que nós, mulheres, queremos?”, assim Virgínia Barros apresenta sua instalação.
 
"Esses sapatos são sensoriais, instigam a explorar o tato. Trazem formas femininas que aparecem, desde o salto e a cepa de madeira, até a parte superior do calçado" - Virgínia Barros, designer de sapatos (foto: Arquivo Pessoal)
Para Virgínia Barros, “quando o lugar de fala é de uma mulher, uma sapateira, começamos a pensar no que é sexy para nós. Muitas de nós não conhecem o próprio corpo. Esses sapatos são sensoriais, instigam a explorar o tato. São calçados que misturam texturas de rendas, pelúcias, veludos, camurças. Trazem formas femininas que aparecem, desde o salto e a cepa de madeira, até a parte superior do calçado. Um convite para que nós, mulheres, tenhamos consciência do nosso corpo, dos nossos desejos”.

Uma das mais importantes artistas plásticas mineiras do cenário atual, premiada, celebrada por desenvolver um trabalho que é um exercício de sarcasmo sobre a arte e o sistema que a envolve, a artista visual Marta Neves, graduada em desenho e em cinema de animação pela Escola de Belas Artes da UFMG, mestre em artes plásticas, dona de uma crítica ácida e humor corrosivo, destaca o trabalho desenvolvido por Virgínia Barros. “A exposição de Virgínia Barros é uma espécie de território onde podemos caminhar com pés mais livres, sem a estreita vigilância das imposições antigas, vindas dos homens que sempre desenharam pés e moças, saltos e apertos. Eu mesma aprendi que para afinar a perna era preciso levantar a panturrilha numa agonia que também me disseram que era linda. Hoje, tenho seis parafusos enfiados aqui pelo osso, vindos de uma queda de um salto duro de madeira. Fico pensando nos escarpins que a artista surrealista Meret Oppenheim, numa perspectiva crítica que só um humor sem riso besta tem, colocou numa bandeja, amarrados e enfeitados como se costuma fazer com esses assados finos. No caso, a 'iguaria' montada pela artista era oferecida ao deleite do fetiche masculino, a nos lembrar que a tortura do bicho abatido é o gozo de seu comedor.”
 
VIDA SEXUAL 

Aliás, para Marta Neves, numa história muito antiga de quem é adestrado e criado como objeto dessa gula, as chamadas mulheres foram fabricadas para também produzir outros alimentos: “Os filhos que engordam a força de trabalho, o esquecimento de si que alarga o prazer do outro, a ideia de feminilidade restrita a uma virilha que nem elas mesmas devem conhecer. Lembro-me de um sujeito que conheci, faz alguns anos, que colecionava listas de sapatos femininos, cada um com tamanho, cor, detalhes ou estampa, altura do salto e, claro, por último, o menos importante: o nome das moças ali dentro: '37, agulha, bicolor, Jacqueline', '35, bico fino, salto 15, verniz vermelho, Márcia'... '36, plataforma, oncinha, Débora', todas servidas e enoveladas na bandeja do desejo dele”.

Na interpretação de Marta Neves, Virgínia Barros resolve ser sapateira e arrebentar esses nós, inventando e moldando sapatos de outro jeito. “Teria que ser ela, de dentro dessa história a refazê-la, com texturas, cheiros, surpresas para os pés e as mãos (sim, são sapatos que a gente toca e brinca de descobrir), dando o troco quente e macio do toque a uma enormidade de casos de mulheres que nunca viveram uma vida sexual insípida, que tiveram medo de fazer as próprias perguntas diante de tantas respostas já dadas, que talvez fossem até moços trans, mas morreram sem tentar pisar fora do cerco ou da bandeja em que se prenderam, para recordar novamente o trabalho de Oppenheim.”

(foto: Cromium Fotografia/Divulgação)
(foto: Cromium Fotografia/Divulgação)

Na visão de Marta Neves, “os sapatos criados por Virgínia Barros lembram seios, vaginas, que têm cheiros diversos, que não se fecham em nossos pés, mas, ao contrário, se abrem à exploração, são assim feito corpos renovados numa outra narrativa, não mais moldados pela norma masculina de sempre, a dos homens que o tempo todo inventaram e desenharam os acessórios femininos. São calçados, agora, de uma sapateira que fala, são a voz de Virgínia junto a tantas de nós, convidando a um gosto especial por caminhar sem medo”.

FIQUE POR DENTRO

“Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”

Estudiosos do tema explicam que o surgimento do feminismo data de 1791, quando a revolucionária e feminista francesa Olímpia de Gouges compôs a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã”, proclamando que a mulher tem os mesmos direitos que os homens e que, por isso, tinha o direito de participar, direta ou indiretamente, da formulação das leis e da política em geral. Isso dois anos depois da Revolução Francesa (1789), mesma época em que foi escrita a Declaração dos direitos do homem e do cidadão”. Embora Olímpia não tenha sido aceita na Convenção de Direitos, atualmente, a sua declaração é considerada um símbolo representativo para o feminismo democrático e racionalista. Contudo, em 3 de novembro de 1793, ela foi executada na França, o que gerou picos de revoltas pelo país e fez surgir vários movimentos feministas pelo mundo. Já o feminismo do século 21 se multiplica em várias tendências. Em plena era digital, usa a tecnologia para difundir a ideia de que a igualdade entre os sexos ainda é uma ilusão e a luta permanece décadas depois dos protestos pela liberação sexual, nos anos 1960, e mais de um século depois da campanha pelo direito ao voto – causas que uniram gerações inteiras de mulheres. Vivemos um feminismo novo e multifacetado, efervescente, nas redes sociais e onde mais for lugar de fala. E como disse a francesa Simone Beauvoir, uma das maiores teóricas do feminismo moderno (além de filósofa, professora e escritora), frase célebre em seu livro O segundo sexo, de 1949: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”.
 


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