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Estado de Minas Educação

Se a educação é para todos, mais do que nunca ela precisa ser inclusiva e livre de preconceitos

Deve ainda representar a diversidade em nossa sociedade e valorizar as diferenças


15/04/2019 07:00 - atualizado 15/04/2019 08:04

"Alice é especial porque é minha filha. Não é mais ou menos especial por suas características. E não é mais difícil, é diferente. Considero minha filha um presente" Mariana Rosa, mãe de Alice, portadora de paralisia cerebral (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)

Nesse domingo foi lembrado o Dia Nacional de Luta pela Educação Inclusiva. Um passo à frente que o país precisa dar. A educação como direito é afirmada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, assim como na Constituição Federal do Brasil, de 1988. Mesmo assim, ainda existem cerca de 781 milhões de analfabetos no mundo, conforme a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

No Brasil, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que fazem parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), de 2016, registram taxa de analfabetismo de 7,2%, o que corresponde a 11,8 milhões de pessoas que não sabem ler nem escrever. Isso porque a meta do governo, conforme a Lei 13.005, de 25 de junho de 2014 - Plano Nacional de Educação (PNE) -, sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff, em seu artigo 2º previa que, em 2024, o analfabetismo deveria estar erradicado no país. Esse é apenas um dos muitos problemas e desafios que a educação enfrenta por aqui.

Diante desse cenário, parece um despropósito pensar em educação (escola) inclusiva no Brasil. Como dar um passo tão nobre, cheio de desafios e necessário, se ainda lidamos com um ensino básico tão deficitário, com tantas carências e atrasos, tanto de formação (professores e gestores) quanto estruturais (instalações físicas inadequadas, falta de equipamentos)? Parece contraditório ou mesmo impossível. No entanto, não tem como esperar resolver os problemas da educação neste país para, só aí, pensar em atender quem tem necessidades que exigem mais atenção na hora da formação educacional. Essa revolução, a essa altura, tem de ocorrer simultaneamente. É obrigatória, para que não se desperdice uma geração após a outra.

Educação inclusiva completa significa a educação livre de preconceitos e que reconhece e valoriza as diferenças. Espaço onde não há iguais versus diferentes ou normais versus deficientes. Todos juntos e com direito de frequentar as salas de aula de ensino regular, que deve retratar a diversidade presente na sociedade. Essa é a luta da jornalista Mariana Rosa, mãe de Alice, de 5 anos, que tem paralisia cerebral. Ela revela que, depois de seis tentativas de matricular a filha em escola regular e não ser aceita, enfim, em 2017, foi acolhida pela Lume Jardim de Infância, instituição particular (regular), que segue a pedagogia Waldorf, que tem por objetivo educar os três aspectos do ser: o pensar, o sentir e o agir, visando a formação de seres humanos livres e inteiros. “As escolas que a recusaram repetiram o mesmo discurso ‘Não trabalhamos com esse tipo de criança’. Essa é a justificativa mais comum. Na Lume, a Alice teve acolhimento logo no primeiro momento e caminha bem.”

Na escola há dois anos, Alice se sente bem, segundo Mariana. Ela gosta de ir para a Lume. “As crianças são afetuosas com ela e, claro, não têm preconceito, porque ele é construído. Assim, elas a incluíram com naturalidade, dão atenção. Fazem perguntas, querem saber por que a Alice não fala, não anda, sobre a cadeira diferente... Explicamos tudo na medida da curiosidade delas. Nada que impeça o estabelecimento de uma forma de interação. Tem aniversários, a Alice é convidada, minha filha passou por uma cirurgia e colegas vieram visitá-la. Tudo natural.”

No entanto, Mariana reconhece que “a Lume é exceção, tenho consciência”. Ela também enfatiza que, além das crianças, Alice foi muito bem recebida pelos pais. “As famílias procuraram entender e, quem não sabia lidar, veio falar, conversar comigo em dúvida do que falaria quando questionadas pelos filhos. Uma mãe me disse que estava preocupada em explicar para a filha e, para surpresa dela, logo no início das aulas, a menina chegou da escola contando para a mãe que tinha feito duas melhores amigas, uma delas, a Alice.”

Mariana, casada com Wesllen há 14 anos, com Alice filha única, não é de apontar dedos para culpados. Para a gerente de comunicação, a questão da falta de inclusão é histórica. “É uma luta pelos direitos das minorias, dos deficientes, que tem evoluído. Até melhorou nos últimos 10 anos, já que antes viviam isolados. É um paradoxo falar de inclusão se não os acolhem, seja na escola, seja no trabalho, privando a sociedade de aprender com o diferente. É um privilégio conviver com as diferenças humanas e é possível se dar bem de forma harmoniosa para exercer a tolerância.”

DIREITOS IGUAIS


Para Mariana, a luta é diária sim e tem de ser construída para que a consciência se instale na sociedade. “A culpa não é da escola, do professor, da empresa, mas é uma questão cultural histórica. Temos, claro, de lutar por direitos iguais para tornar a diferença natural. E ela é.”

A jornalista enfatiza que ninguém está preparado para lidar com a diferença, já que não fomos educados para tal e a diferença provoca e desafia. Ela chama a atenção para a atitude e o comportamento que todos deveriam buscar, que é o de acolher, pensar na capacidade de cada um, ajustar as ferramentas e oferecer estratégias diferentes. “Não é lidar com o diferente abrindo um livro com normas e regras e colocá-las em prática. Há técnicas que auxiliam, mas a verdade é que o ajuste é quase individual.”

Mariana enfatiza que Alice não é especial na conotação que a sociedade está confortável em denominar. “Alice é especial porque é minha filha. Não é mais ou menos especial por suas características. E não é mais difícil, é diferente. Considero minha filha um presente. E, de novo, simplesmente por ser amorosa, linda e pelo vínculo de amor que temos.” E todo esse amor e respeito Mariana compartilha com todos no blog Diário da mãe da Alice.

Responsabilidade é de todos
A escola inclusiva se compromete a enfrentar todas as formas de exclusão, marginalização e desigualdades no acesso, na participação e nos resultados de aprendizagem e trabalho


O mundo e o Brasil têm avanços na educação inclusiva, mas estão longe do ideal. Na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, missão ambiciosa adotada por 184 estados-membros da Unesco, a meta é assegurar a educação inclusiva e equitativa de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos. A educação transforma a vida e é o principal impulsionador para o desenvolvimento da sociedade.

A educadora e escritora Andrea Ramal, doutora em educação pela PUC-Rio, professora de português, literatura e redação ao longo de 20 anos, frisa: “Acredito na teoria de que é melhor uma sala diversificada, tanto para as crianças das aulas regulares quanto para quem precisa de atenção. As duas vão se desenvolver mais, com a ressalva de que, da maneira como funciona hoje, não ocorre uma real inclusão, aliás, é uma inclusão excludente”.

Para Andrea Ramal, a sala de aula dialógica, inclusiva e plural é espaço de construção de novas identidades, capazes de se engajar na construção de uma sociedade justa, democrática, solidária e sustentável. Mas, no Brasil, está longe de ser uma realidade. “O professor não dá atenção, não tem capacitação e as famílias rejeitam. A sociedade não está preparada. Pior, muitos pais abandonam a escola diante de experiência negativa. Conheço muitos que colocaram o filho na escola e o tiraram. O problema é que dizem que o ‘filho não se adaptou’, quando, na verdade, é a escola que não se adequou.” Crítica, ela enfatiza que a questão é que o projeto pedagógico, na prática, não ocorre. “Vejo pais decepcionados, que não acreditam mais na escola inclusiva, porque a realidade é outra. É bem diferente do que é proposto e estabelecido em lei.”

(foto: Renato Bairros/Divulgação)
(foto: Renato Bairros/Divulgação)

Para a expert, apesar de a escola inclusiva ser obrigatória (Lei 13.146/2015) e ser um avanço, os resultados ainda são insignificantes. Para a transformação de fato ocorrer, Andrea Ramal indica três pilares para esse avanço. “Primeiro, a capacitação dos professores nas mais diversas demandas de deficiências. Em segundo lugar, respaldo do governo, colocando agentes educacionais especializados para apoiar o professor que tem de lidar com 30, 40 alunos em sala. O que está na lei. E, em terceiro, a escola conscientizar as famílias sobre os benefícios da inclusão para acabar com o preconceito.”

Andrea Ramal avisa que não é um caminho fácil, leva tempo. Ela reconhece que num país em que “temos escola sem biblioteca e quadra esportiva (sim, elas existem!), pode ser contraditório um passo como o da escola inclusiva. No entanto, é preciso caminhar juntos para resolver os problemas da educação no Brasil. Não dá para solucionar uma demanda de cada vez, não há tempo. Temos de pensar nesses alunos não atendidos. São gerações perdidas”.

ACESSIBILIDADE ATITUDINAL


Luiz Henrique Carneiro, coordenador do Núcleo de Orientação Psicopedagógica e Inclusão do UNI-BH, o Nopi, conta que desde 2014 o centro universitário tem definidas estratégias e ações de apoio à comunidade acadêmica com atendimento especializado para a inclusão de alunos com deficiências e transtornos. “Houve um crescimento no número de matrículas desde a implantação do nosso departamento, com um boom em 2016 e 2017. Temos alunos em praticamente todos os cursos: enfermagem, medicina, medicina veterinária, enfim, um grande contingente.”

O coordenador conta que há estudantes com autismo, deficiência auditiva, baixa visão, cegos, com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e transtorno de aprendizagem: “Em 2017, o UNI-BH decretou a Resolução 21, que garante a inclusão desses alunos no centro universitário, o chamado CEP (Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão) de 30 de junho. Com ele, buscamos um processo equitativo. O aluno sinaliza sua deficiência ou transtorno, agendamos o atendimento para entender as especificidades e, assim, podemos trabalhar a individualidade e peculiaridade de cada um. Ao compreender a demanda podemos atuar durante o processo, que é bem criterioso”.

A preocupação de maior impacto no processo de inclusão no UNI-BH é quanto à acessibilidade atitudinal. Luiz Henrique explica: “Fazemos um trabalho forte em prol da inclusão com eventos, palestras e nas redes sociais. A cada ano damos passos importantes e avançamos nesse convívio, que tem sido natural. Com nossas ações, todos percebem que é possível ter um jornalista autista, um professor com síndrome de Down e um personal traineer cadeirante. Buscamos um movimento de sensibilização que envolva toda a comunidade acadêmica”. O que tem influenciado a sociedade como um todo, o que também é uma preocupação e um papel que o UNI-BH assume. Inclusive, o centro universitário desenvolve pesquisas e projetos de extensão sobre a inclusão de pessoas com alguma dificuldade.
(foto: Reprodução/Internet)
(foto: Reprodução/Internet)

Para ler...


O livro Inclusão escolar. O que é? Por quê? Como fazer?, de Maria Teresa Eglér Mantoan, uma das maiores especialistas em inclusão escolar no país, mestre e doutora em educação pela Unicamp, de maneira clara e didática explica o que é educação inclusiva, discute os passos necessários para implantá-la, ressalta o que a sociedade ganha com esse processo e destaca suas vantagens baseando-se na legislação sobre o tema. Livro fundamental para educadores que desejam saltar da teoria para a prática.


Serviço
Livro: Inclusão escolar - O que é? Por quê? Como fazer?
Autor: Maria Teresa Eglér Mantoan
Editora: Summus Editorial
96 páginas
R$ 38


SAIBA MAIS: Rompe-se a exclusão

De acordo com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, criada pelo Ministério da Educação em 2008, os estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, segmentos que compõem o público-alvo da educação especial, têm o direito a frequentar a sala de aula comum e, quando necessário, receber atendimento educacional especializado no período inverso ao da escolarização. Historicamente, essas pessoas foram excluídas do sistema educacional ou encaminhadas para escolas e classes especiais. Como resultado da implantação da referida política, entre 2007 e 2014, as matrículas desses estudantes em escolas regulares subiram de 306.136 para 698.768 (aumento de 128%). Em 2014, 78,8% desses estudantes matriculados na educação básica estavam estudando em salas comuns, sinalizando rompimento com o histórico de exclusão. Os desafios implicados na ampliação desses expressivos avanços envolvem a continuidade de investimentos na formação de educadores, no aprimoramento das práticas pedagógicas, na acessibilidade arquitetônica e tecnológica, na construção de redes de aprendizagem, no estabelecimento de parcerias entre os atores da comunidade escolar e na intersetorialidade da gestão pública.

Fonte: Observatório do Plano Nacional de Educação (PNE)

Inclusão no trabalho


A contratação de pessoas com deficiência ainda é um tema cercado de dúvidas. A promoção da inclusão e a garantia da manutenção de colaboradores especiais e qualificados no quadro de funcionários nas empresas é uma luta diária. A pesquisa “”Expectativas e percepções sobre o mercado de trabalho para pessoas com deficiência”, feita pela Catho, desmistifica a lenda de que profissionais com deficiência são desqualificados. Segundo o levantamento, 57% dos entrevistados estão em alguma etapa do ensino superior. Buscar por uma educação inclusiva faz com que pessoas com deficiência sejam cercadas por desafios e enfrentamentos desde o primeiro ano escolar. A falta de um olhar mais sensível para a inclusão desses alunos influencia diretamente no nível de desenvolvimento de suas potencialidades pessoais e profissionais. Diante desse cenário de diversos obstáculos, muitos têm se destacado e alcançando elevado nível de escolaridade.

Conforme dados coletados pela Catho, site de classificados de empregos, o i.Social e a Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH-Brasil) e ABRH-SP muitos são os níveis de qualificações desses profissionais: 21% têm nível superior completo, 13% curso superior em andamento, 10% cursos superior incompleto, 8% pós-graduação concluída, 4% pós-graduação em andamento e 1% mestrado.

O termo “qualificação” surge comumente como parte da estratégia de contratação de pessoas com deficiência apenas para preenchimento da Lei de Cotas. Seja com oferta de posições com baixos salários ou inferiores aos objetivos definidos, esses profissionais não são enxergados por suas competências profissionais. Para o gerente de marketing da Catho, Ricardo Morais, a construção dessas lendas apenas reforçam a dificuldade de acesso para essa população: “A construção da imagem sobre pessoas com deficiência reflete no ambiente corporativo. Muitas são as dúvidas levantadas quando o assunto é a inclusão desses profissionais: têm qualificação? Podem atuar em qualquer setor, cargo ou liderar equipes? Como me comunicar sem ofender ou constranger? Ter esses conhecimentos é fundamental para a inclusão”, afirma o gestor. No site da Catho, para a conscientização e participação de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, há um manifesto “Minha vaga por direito”. Conheça e acesse o link minhavagapordireito.com.br para conhecer mais sobre o movimento.

Construção de uma consciência
A educação tem de levar em conta a subjetividade humana e que, em algum momento, cada um, à sua maneira, demandará um atendimento especial frente as suas necessidades

"A inclusão começa pelo desejo de incluir. A aprendizagem é um a um, é experienciar suas próprias características, interesses, habilidades e necessidades, independentemente do seu diagnóstico ou mesmo do seu rótulo" Jane Patrícia Haddad, mestre em educação (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press )

Como dizia o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman: “Pela primeira vez, estamos percebendo que as diferenças entre os seres humanos e a falta de um modelo universal vieram para ficar” (Bauman, 2013). Esse é o start que a mestre em educação Jane Patrícia Haddad, psicanalista e psicopedagoga, escolheu para explicar que pensar inclusão no ambiente escolar não significa apenas criar vagas para as pessoas com necessidades especiais na escola regular, e muito menos apenas seguir as leis. “Incluir é superar nossas próprias dificuldades em aceitar aqueles e aquelas que são diferentes de nós. Incluir requer um processo a ser construído diariamente, em que a escola se torna acolhedora das diferenças, inclusive em seu currículo e formas de avaliar. Incluir não é uma ação tão natural quanto parece, é uma construção contínua de uma conscientização política de que todos devem ser agentes e, portanto, o sujeito do ato educativo, independentemente da limitação física, psíquica e emocional.”

Jane Patrícia Haddad ensina que a escola foi uma invenção da modernidade e sempre sustentou um modelo cartesiano/positivista de aluno, o que influencia até hoje nas práticas escolares. “Mudar isso é um longo processo. O que as escolas vêm fazendo é um repensar constante sobre esse modelo, já que os alunos ‘ideais’ deverão ser olhados como alunos ‘reais’, com possibilidades e também com suas limitações. A educação terá que levar em conta a subjetividade humana, que não poderá ser reduzida apenas ao aspecto cognitivo e suas fases de desenvolvimento. Lembremo-nos de que todos nós, cada um à sua maneira, em algum momento teremos que ter atendimento especial frente as nossas necessidades. Educar é levar luz, abrir atalhos diante de rodovias sem paisagem, é despertar no outro o que ainda está adormecido. É dar exemplos de cidadania, respeito aos diferentes. Temos feito inclusão?”

Conforme Jane Patrícia Haddad, nossa educação ainda se baseia em modelos de ‘iguais’, em padrões de qualidade, eficiência e rankings. Para alguns alunos isso é possível, mas não para todos. “Uma sociedade que prima por modelos ideais de beleza, inteligência, felicidade e desempenho não deve se desconectar de outras habilidades e subjetividades possíveis. Freud já nos alertava que o estado de bem-estar é um ideal inatingível. Não há como negar a verdade do sujeito, que podemos pensar como a ‘dor do existir’, que constitui o sujeito, portanto, a tão proclamada educação prazerosa e seu bem-estar é impossível, o desprazer está presente em toda relação. Ser diferente é fato, gostemos ou não, e excluir é crime.”

Com toda experiência e visão, Jane Patrícia Haddad conta que algumas instituições vêm propondo mudança na forma de olhar e escutar o sujeito que chega à escola. “Inclusão refere-se à redução de todas as pressões pela inclusão de uma educação para todos. Sim, todos e cada um têm o seu direito constitucional de poder pertencer ao sistema educacional, independentemente de suas deficiências, eficiências, rendimento escolar, religião, etnia, gênero, classe, estrutura familiar, estilo de vida ou sociedade. Incluir é olhar para os profissionais da educação com respeito. A grande discussão hoje é que o professor já foi mais valorizado, como tantos outros profissionais também já o foram, e hoje não o são. Incluir requer muito estudo de caso a caso. Isso leva tempo, são necessárias muitas trocas e, principalmente, estudo.”

CORRESPONSABILIDADE

Para a psicopedagoga, a educação como reflexo de uma sociedade está vivendo uma transição de valores, antes tidos como universais (o aluno ideal) e hoje sem uma referência muito clara: “O que é um valor para uma escola já não é para outra e, assim, seguimos buscando novos modelos, referenciais, reconhecimentos e outras formações. Acredito que o valor deverá vir de dentro para fora, cada um terá que se rever, inclusive nos seus melindres, angústias e saberes. Defendo que os professores brasileiros estão passando por um momento rico, de transformação, e os mais ou menos não sobreviverão. Há um convite convocatório de conscientização política. Cada um em sua escola, em sua comunidade é um agente e, portanto, sujeito do ato educativo a que se propôs. Não se consegue mais responsabilizar o outro por aquilo que não se faz. O momento é de corresponsabilidade.”

Já passou da hora, enfatiza Jane Patrícia Haddad, de todos se despedirem da educação onipotente, que pode tudo e sabe de tudo. “Não temos todas as respostas e as certezas já não atendem mais à nossa educação. Os processos de inclusão real exigem uma despedida, com todos os lutos necessários. A escola é um ambiente que deve refletir a sociedade como ela é. É desse ponto que construiremos uma sociedade mais comprometida, é de dentro da escola e não mais só de dentro da família. É a educação “formal” que está convidando e convocando as famílias a acolherem os alunos com necessidades especiais, que deverão ser atendidos em suas potencialidades e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades educacionais. É essa escola em que acredito, uma escola que tenha cheiro e cara de mais um lugar de vida.”

• Pontos essenciais:


» 1 -
As crianças menores não são (ainda) dotadas de preconceitos, pelo contrário, elas são muito solidárias e suportam bem seus diferentes
» 2 - Professores e gestores que apostam nos sujeitos conseguem bons efeitos
» 3 - Acolher é o primeiro passo de qualquer humanização possível
» 4 - A primeira atitude é destituirmo-nos do lugar de “sabe-tudo”, do lugar apenas do ensinar, o momento é um convite a apreender com os ditos “especiais” e partir do pressuposto de que cada um de nós, em algum momento da vida, terá uma necessidade especial
» 5 - Quem é o sujeito que adentra nossas escolas? A educação inclusiva permite um repensar e uma possibilidade de lançar o olhar para outras diversas direções ainda não visitadas
» 6 - A Lei da Inclusão deve ser olhada como um convite à inovação e à humanização da educação
» 7 - Inclusão é para poucos. É preciso acordar e ultrapassar a imposição da lei, e lembrar: “Há muitas pessoas de visão perfeita que nada veem... O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido”, já alertava Rubem Alves, psicanalista, educador, teólogo e escritor

• Para pensar...

Escolas, assistam com seus docentes ao documentário Nunca me sonharam, de Cacau Rhoden, em que o título é a frase de um adolescente que nunca foi sonhado por seus pais. E reflitam: sonhamos algo para os alunos e alunas ditos deficientes?. Olhem para crianças e jovens que pensam diferente de vocês e os escutem em suas diferentes formas de se comunicar. E reflitam sobre uma escola que escuta pessoas e não CID(S) de doenças, estamos lidando com pessoas, com gente, com seres humanos que clamam por um sentido de vida, sentido de aprender, sentido em ir todos os dias para as escolas e enfrentar seus desafios, seja no lugar de professores ou no lugar de alunos. Precisamos de escolas e universidades que nos lembrem que somos humanos e diferentes, que nos transmitam algo a mais do que passar de ano e ser o melhor da turma para, amanhã, conseguir um bom emprego.

Capacitação contínua
Educação inclusiva é direito humano incondicional. Não é questão de aceitar. Diferenciar em razão da condição de alguma deficiência é discriminação. O maior desafio é o preconceito da sociedade


Para Sônia Marinho Amaral, diretora da Escola Estadual Maurício Murgel, o maior desafio é oferecer sempre o melhor(foto: Edésio Ferreira/EM/D.A Press )
Para Sônia Marinho Amaral, diretora da Escola Estadual Maurício Murgel, o maior desafio é oferecer sempre o melhor (foto: Edésio Ferreira/EM/D.A Press )

Bons exemplos existem e são estimulantes. Em 1998, a Escola Estadual Maurício Murgel foi indicada pela Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE-MG) para atender os alunos surdos e cegos do ensino médio. Desde então, o número de alunos atendidos aumentou gradativamente e hoje a instituição se tornou uma escola altamente inclusiva. Ela atende alunos com surdez, cegueira, paralisia cerebral e deficiência intelectual. A diretora, Sônia Marinho Amaral de Resende, ressalta que “acredito na educação inclusiva. O maior benefício é o aprendizado diário e a convivência, e o maior desafio é oferecermos o melhor. Por isso, temos de nos capacitar sempre.”

Na Escola Estadual Maurício Murgel, Sônia Resende conta que a inclusão foi um processo sem traumas: “É uma rotina na qual todos se respeitam e aprendem uns com os outros.” Quanto à formação e preparação dos professores e dos funcionários para receber os alunos com uma demanda específica, também foi sem grandes atropelos: “Os profissionais interessados buscam capacitações diferenciadas e de acordo com o seu interesse. A principal capacitação e a mais prática e objetiva é a aceitação das diferenças e o respeito à individualidade de cada aluno, ‘respeitando o seu tempo diferenciado’”. A diretora frisa ainda que “a SEE oferece os profissionais necessários, assim como cursos diversos de capacitação durante todo o ano letivo.”

Vale destacar a iniciativa da escola, que, em 7 de março, iniciou o curso técnico de tradução e intérprete de Libras (língua brasileira de sinais), projeto-piloto do estado de Minas Gerais. No dia a dia da instituição, Sônia Resende conta que “a Libras é o meio de comunicação entre os alunos surdos e ouvintes. Temos a presença do profissional intérprete de Libras em todas as salas com os alunos surdos. A escola oferece o curso de ensino de Libras destinado aos alunos surdos que chegam no ensino médio sem saber Libras, aos colegas dos alunos surdos com o objetivo de favorecer a comunicação entre todos, e aos profissionais e membros da comunidade escolar.”

APOIO DO GOVERNO

Com toda experiência, os desafios diários, Sônia Resende destaca que “a inclusão é o assunto do momento e todos estão reconhecendo a sua importância e manifestando interesse pelo assunto. Além dos grandes avanços tecnológicos que contribuem para uma educação de qualidade para todos, o tema da redação do ENEM em 2017 (Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil) fez com que o Brasil inteiro refletisse também sobre o assunto. Não só em relação aos surdos, mas a todos que carecem de uma atenção diferenciada, respeito e reconhecimento de que todos são capazes de aprender e contribuir para um mundo mais humano, justo e solidário.”

No comando de uma instituição estadual, Sônia Resende afirma que a “escola tem se esforçado para lidar com as diferenças buscando uma educação de qualidade para todos. É notório o esforço do governo mineiro, quando amplia o quadro de pessoal das escolas ofertando intérprete de Libras, professores de apoio, professores para as salas de recursos multifuncionais tantos quantos forem solicitados, além de vários cursos de capacitação específicos durante o ano letivo.”

(foto: Arquivo Pessoal )
(foto: Arquivo Pessoal )
ENTREVISTA/MEIRE CAVALCANTE/MESTRE EM EDUCAÇÃO

» A reivindicação tem de ser de todos

Meire Cavalcante, jornalista, mestre e doutoranda em educação, ex-consultora da Unesco e da Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) na área de educação inclusiva, em conversa com o Estado de Minas chama a atenção para um problema em que toda a sociedade deve se envolver. A responsabilidade é de todos. Confira os principais pontos:

Você acredita numa sala de aula inclusiva? Quais os benefícios?

Mais do que acreditar, entendo que devemos lutar para que todas as salas de aula sejam inclusivas. Inclusão escolar é uma questão objetiva, demarcada na esfera dos direitos humanos. Assim, não se trata de crença, mas de trabalhar para fazer valer um direito constitucional de todas as pessoas, com ou sem deficiência, em relação ao acesso à escola, à permanência com dignidade e, sobretudo, à aprendizagem, dentro das possibilidades de cada um. Quando a gente faz valer um direito a qualquer pessoa, o maior benefício é para a sociedade. Não se trata de uma ação que deva ou possa ser justificada com base em benefícios a este ou àquele grupo. É positivo para as crianças, jovens e adultos com deficiência? Óbvio, porque estão exercendo um direito. E para os demais, sem deficiência? Também, pois viver em uma sociedade que legitima a exclusão de um grupo de pessoas em razão de suas características é viver na barbárie.

E quais os grandes desafios?

Poderia listar muitos em relação à organização escolar, à concepção de escola, no geral, ao financiamento da educação pública. Mas o desafio central é modificar a concepção de deficiência que nossa sociedade tem. A deficiência, por muito tempo (e para muita gente, ainda hoje), foi associada à ideia de improdutividade, de limitação, de incapacidade. Era isso o que justificava a segregação de pessoas com deficiência em escolas e classes especiais ou em instituições, até o fim de sua vida. Conforme nosso entendimento sobre o conceito de deficiência avançou, finalmente entendemos o contexto da pessoa com deficiência como o principal foco de limitação para o exercício pleno de seus direitos. Passamos, então, a identificar as diversas barreiras existentes na sociedade (de natureza física, comunicacional, de informação, de transporte e atitudinal, entre outras). Assim, a pessoa passou a ser reconhecida, antes de qualquer coisa, por sua humanidade, e não por sua deficiência.

Enfim, passamos a não mais rotular e definir até aonde cada um pode ir, ou o que pode fazer de sua vida, com base na deficiência?

Sim. Essa concepção foi trazida pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, publicada pela ONU em 2006, incorporada à nossa Constituição Federal, em 2009, por meio de uma emenda constitucional. A partir dessa concepção, o Brasil, em 2008, publicou a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI). E isso foi um marco para o país. Nesses 10 anos de PNEEPEI, muito avançamos. Hoje, as escolas compreendem a inclusão escolar como um direito. Destaca-se também o Atendimento Educacional Especializado (AEE), regulamentado em 2009 pela Resolução 4 (CNE/CEB), como um serviço da educação especial cujo principal objetivo é justamente identificar as barreiras (de todas as naturezas) no ambiente escolar e, a partir do estudo de caso, elaborar o plano de AEE, essencial por articular todos os envolvidos no processo de escolarização, a fim de garantir a quebra de barreiras e efetivar a inclusão. É um marco político e pedagógico revolucionário para as escolas. Recentemente, o modelo social deu lugar ao modelo de direitos humanos, que institui como primordial o direito de a pessoa com deficiência fazer uso dos recursos que lhe são disponibilizados, com liberdade de escolha, de expressão, de utilização, a partir do conhecimento dos mesmos. Implica um efetivo protagonismo.

Com tantos problemas do ensino no Brasil, é possível uma educação para todos?

Evidentemente que sim. Se não acreditarmos, como vamos construí-la? No que diz respeito aos alunos com deficiência, os números brasileiros são muito positivos. O país mais que triplicou o número de matrículas no geral. E, mais positivo ainda, inverteu-se o quadro do tipo de matrícula. Há cerca de 20 anos, mais de 90% das matrículas eram em escolas e classes especiais (segregadas). Hoje, é exatamente o contrário.

Para uma educação inclusiva é preciso um currículo diferenciado?


Não. É justamente o contrário. O acesso ao currículo é um direito de todos os estudantes. Diferenciá-lo em razão da condição de deficiência é discriminação. Infelizmente, ainda há quem defenda a adoção de práticas arcaicas, como a diferenciação curricular em razão da deficiência. Essa prática está na contramão não apenas da evolução de nossos marcos teóricos, políticos e legais, mas também vai contra as conquistas da escola brasileira, que, há mais de duas décadas, vem buscando compreender que a diferenciação só pode existir se for para garantir o pleno acesso à escola e ao currículo. Jamais a diferenciação, seja ela de natureza curricular ou de qualquer outra, pode ser usada para justificar “estar à margem”, fazer atividades “separadas”, “individualizadas”, “facilitadas”, “infantilizadas”, “limitadoras” e todos os demais termos que encerram o significado da diferenciação curricular. O que precisa mudar não é o currículo para este ou aquele aluno, mas a prática pedagógica para todos. A maneira como se ensina, como são apresentados os conteúdos, se são contextualizados... Também é preciso repensar as estratégias, os materiais usados em sala de aula. Precisamos rever os tempos e os espaços da escola, encarar o desafio de fazer com que a escola não busque mais alunos ideais ou tente organizar turmas homogêneas (pois isso é uma grande ficção). A educação inclusiva vem desafiar a escola a se reinventar. E isso é bom para todos.

O desafio da inclusão também encontra barreira na estrutura?

Sobre a estrutura, ainda temos muito o que caminhar. Mas, se a pessoa não estiver ali, presente, demandando seus direitos, a escola estará preparada e acessível quando? Em que era? Há muito o que fazer. A acessibilidade mais óbvia é a física (rampas, banheiros, piso tátil, portas largas etc.). Nesse sentido, temos avançado. E, mesmo com os avanços, há problemas. Dou um exemplo simples: se uma pessoa nunca estudou com quem tem deficiência física, talvez ela não se incomode de ver um projeto arquitetônico ou um prédio pronto com escadas para todos os lados. Porém, se essa pessoa cresceu em uma escola inclusiva, é mais fácil para ela estranhar um edifício pronto sem acessibilidade, pois isso já faz parte de sua vida. A acessibilidade como um valor social é também uma questão que requer tempo. O mesmo vale para a acessibilidade de outras naturezas: a presença do intérprete de Libras na sala de aula, num evento cultural ou no ambiente de trabalho; o uso de software de acesso ao computador por pessoas cegas; a comunicação com pessoas com implante coclear ou que fazem leitura labial; o uso de tecnologia assistiva e de comunicação suplementar alternativa. Tudo isso está em construção na escola inclusiva e, mais recentemente, no ensino superior e no ambiente de trabalho. Precisamos de tempo para que isso se consolide não só nas escolas, mas como algo valorizado e reivindicado por todos, e não só por quem tem deficiência.


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