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Contrassenso à liberdade

Há quem tome como atitude radical a saída das redes sociais e pregue moderação. Mas tem também quem vê exageros, perda de controle e consequências não só para a privacidade quanto para a saúde


postado em 17/03/2019 05:11

No mundo atual, estar fora das redes sociais parece um sacrilégio. Para Maria Clara Jost, pós-doutora em psicologia clínica, docente da pós-graduação lato sensu da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais (FCMMG) e psicóloga da Tip-Clínica, isso é um grande contrassenso numa sociedade que privilegia tanto a liberdade. De fato, vivemos sob o comando de um novo imperativo: “é preciso se conectar”. E conectar-se em rede, com a finalidade de expor sua vida, seus sucessos, suas viagens, suas festas, seus amores. “Sim, é preciso que o processo de venda de si mesmo siga os mesmos padrões da propaganda feita para o consumo: tudo deve ser artificialmente perfeito e limpo, sem dor e sem conflitos, sem angústia e sem sentido, vazio e asséptico. Também é importante que as “postagens” sejam sempre no plural. Com efeito, nessa nova organização sociocultural, a questão não passa mais por ‘querer ter um milhão de amigos’, porém, ‘ter que ter’ um milhão de amigos, curtidas, comentários e seguidores para ‘aparecer’ – no sentido aqui de ‘parecer ser’ amado, procurado, reconhecido.”


O assustador, como joga luz a psicóloga, é que nesse contexto é preciso que os ‘amigos’ sejam virtuais: conectar-se, mas jamais se contatar, para garantir que não haverá percepção visível de emoção real. “O máximo que se admite são emojis para substituir o sentir legítimo, porque, afinal, ainda somos gente. Na realidade, como reflete o sociólogo Zygmunt Bauman, agora, o assunto em pauta não se refere mais ao estabelecimento de relacionamentos. Outrossim, a demanda é de ‘redes de conexões’ que assegurem a autorização social para que se possa entrar e sair de uma outra vida com o simples apertar de um ‘enter’ e depois de um ‘delete’, sem delongas, sem sofrimento.” Em contrapartida, diz Maria Clara Jost, somos vigiados todo o tempo. “A velha ‘fofoca’ de tempos outrora tomou proporções gigantescas.”


Não obstante, a psicóloga diz que existem justificativas que endossam as delícias e as liberdades “vigiadas” desse “maravilhoso mundo novo”. “Afinal, ninguém obriga você a participar de uma rede social, a ter celular, tablet, notebook ou similares. Porém, não os ter não seria se colocar à margem ou excluído do próprio mundo, quando este é virtualizado? Ser estranho, esquisito, pária da sociedade talvez sejam algumas das qualificações para seres que ousam se comportar assim.” Por outro lado, Maria Clara Jost enfatiza que o ser humano tem buscas e exigências que lhe são basilares. “Necessidades afetivas, como a percepção do afeto, o reconhecimento de si mesmo e de seus valores, a percepção de si como alguém único e como alguém que faz a diferença, que afeta e é afetado. Segundo Luigi Giussani, teólogo e pedagogo, para que a pessoa possa ter uma existência equilibrada e saudável, precisa encontrar respostas a exigências primordiais, como a exigência da verdade, da justiça e da liberdade.”

CANSADAS Para a psicóloga, de fato, na busca de quantidade, profusão de imagens e informações, excesso de exposição e estimulação, em um ritmo frenético de sensações, emoções e adrenalina, as pessoas ficam cansadas, exauridas, esvaziadas de autenticidade, de verdade e de unicidade. “Forjam-se sentimentos de ansiedade, angústia, tristeza e depressão. Por certo, engendrou-se uma nova solidão: vivemos relacionamentos fakes, vivemos sentimentos fakes, artificiais e mecânicos. Como confiar? Como se vincular? Como acreditar? Vivemos o vazio de sentir, em um mundo que enaltece o sentir. Sente-se tudo para não se sentir nada. Grande contradição dos tempos modernos. Suicídio emocional. Suicídio do sentido. Suicídio do sentir.”


Pelo relatório da World Global Style Network (WGSN), empresa de previsão de tendências de Londres, que acena pela possibilidade do suicídio virtual nos próximos cinco anos, Maria Clara Jost acredita que, quem sabe, a sociedade esteja sinalizando uma nova era, “à semelhança, talvez, do ocorrido quando do movimento hippie, na década de 1960, onde alguns, ainda poucos, corajosos estão reclamando o direito de se ‘desconectar’. ‘Paz e amor’, esse era o lema de então. ‘Paz e amor’, talvez seja esse também o mote de agora.” Ela pensa que o desejo nascente ou resgatado de estar junto com o outro ocorra pela necessidade do contato direto, sem intermediários. “Os ‘estranhos seres digitais’ querem o olho no olho, ver e sentir emoções. Querem integrar-se, envolver-se, vincular-se, tocar e ser tocados. Querem lutar pelo direito de existir. Não querem ser meramente dígitos em máquinas cada vez mais inteligentes das redes digitais. Querem, ‘os revolucionários digitais’, fazer contato com o outro e com o mundo, para retomar o contato consigo mesmo.”


No que percebeu dos revolucionários digitais, Maria Clara Jost acredita que eles denunciam que é preciso fazer frente a essa nova forma de dominação que se infiltrou no ambiente humano e destrói o bem que temos de mais precioso: a capacidade de criar um mundo propriamente humano. “Um mundo feito de gente e por gente. Reclamam a autonomia e a liberdade de serem simplesmente o que são. Querem engajamento, continuidade e memória. Não memória em bits, mas aquela memória que se guarda no coração, a que revela a nossa capacidade de construir relações de pessoa para pessoa.” Mas será que essa contracorrente terá força para resistir à pressão dessa onda digital que promete se agigantar? “Provavelmente, terão que conviver com o que está aí, já posto. Suicídio virtual? Talvez seja uma boa contraposição ao suicídio dos afetos e da destruição de si mesmo que uma solidão virtual pode acarretar.”

‘Já fomos capturados’

“A saída consciente das redes sociais diminui a interação naqueles ambientes e reduz a exposição dessa ‘vida perfeita midiatizada’, mas não impede a invasão de privacidade e a captura de dados. É uma forma de frear a exposição, mas não necessariamente limita a vigilância, pois, se considerarmos os algoritmos, que monitoram nossos usos de toda a tecnologia, eles têm informações sobre nós que vão muito além do que postamos. Há ainda o fato de que os dispositivos capturam informações sobre nossa localização, nossa voz e imagem sem que estejamos em uso desses recursos, justamente para alimentar os algoritmos”, alerta Pablo Moreno Fernandes Viana, professor de comunicação da PUC-Minas.


Para o professor, as redes potencializaram o hedonismo característico da pós-modernidade e a sensação de as pessoas quererem ser especiais e únicas e o desejo de estar sempre informadas. Por outro lado, ele acredita que é possível viver off-line, no que diz respeito no acesso às redes e sem carregar dispositivos conectados à rede. “No entanto, creio que seja impossível viver sem acesso ao e-mail, que se tornou uma ferramenta corporativa e pessoal de troca de correspondência, assim como de outros serviços, que hoje são feitos com mais agilidade no ambiente digital: bancários e públicos, entre outros. O processo de transição de uma vida hiperconectada para uma vida mais off-line exige tempo e processo de desintoxicação. Creio que seja possível, para quem deseja.”


Pablo Viana afirma que a lógica da vigilância é um fenômeno do mundo contemporâneo. “Ainda que isso represente uma violação de privacidade, também produz uma maior ideia de segurança. Então, há esse contraponto quando se pensa em questões como o excesso de vigilância, tão discutido. A onipresença de câmeras de segurança, dispositivos de filmagens e aplicativos de localização representa uma violação em nossa privacidade, mas há de se pensar em como – em alguns casos – essa exposição contribui.” O professor lembra que, no recente caso do estrangulamento de Pedro Gonzaga pelo segurança de uma rede de hipermercados, as imagens das câmeras de segurança contradisseram a versão dada pelo homem que o matou; o mesmo pode se dizer de casos de abusos policiais da polícia do Rio de Janeiro, em que filmagens nos celulares de pessoas mortas contradisseram a versão da PM de que se tratava de bandidos ou de que essas pessoas estavam armadas, sendo provas cabais nos julgamentos. O mesmo se percebe nos recorrentes relatos de violência contra mulheres em aplicativos de mobilidade: o compartilhamento da localização permitiu que se encontrassem essas pessoas, impedindo que o pior ocorresse.

RASTROS Sobre a ideia de ausência de controle da vida, Pablo Viana diz que “me preocupam mais as informações coletadas sem nossa autorização (rastros de navegação, trechos de conversas privadas e registros de câmera) do que os dados e informações que cedemos conscientemente.”


Para Pablo Viana, as pessoas que conseguem viver plenamente nesse contexto foram capazes de racionalizar e internalizar a mudança nos regimes de visibilidade e aceitam que é um fenômeno contemporâneo contra o qual não se pode fazer muita coisa. “Em muitos casos, pensar sobre a invasão de privacidade (autorizada por nosso clique, geralmente sem a leitura das políticas de uso de redes sociais e dispositivos tecnológicos) e sobre essa superexposição da atualidade cria ansiedades. Essa ansiedade que faz com que nos tornemos paranoicos acerca de uma privacidade que, se formos observar bem, não existe em tempos pós-modernos. Não creio que a opção por um binarismo ‘certo e errado’ resolva. A vida tornada pública já é uma realidade, quer as pessoas queiram ou não. Mais do que isso, é válido que cada um racionalize nos limites da publicidade de sua privacidade e faça somente aquilo que ache prudente, respeitando seu espaço e o das pessoas que convivem consigo, naturalmente.”


O professor destaca que o individualismo não é fenômeno novo. Da transição da modernidade para a pós-modernidade, o que se observa é uma tendência de uma vida orientada para o presente, o que demanda uma felicidade instantânea, sem direcionar o pensamento para o futuro. “Nas grandes metrópoles, esse individualismo é uma realidade há muito tempo. Se antes as pessoas ficavam sozinhas em cafés e restaurantes lendo livros ou jornais, hoje estão se comunicado por meio de seus dispositivos móveis. Se antes interagiam ‘olho no olho’ numa mesa de bar, esse espaço hoje é ampliado e compartilhado entre as pessoas que estão naquela mesa e aqueles que acompanham aquele acontecimento por stories ou por fotos. Afirmar que a tecnologia criou novas solidões é radical e injusto, porque elas promoveram novas sociabilidades e encontros de grupos que não tinham facilidade de estabelecer relações afetivas, como de pessoas tímidas, por exemplo. Sendo assim, falar sobre falta de contato emocional é cruel, pois coloca que essas pessoas não vivem uma vida real.”


Na análise do professor, antes, as formas de sociabilidade que forçavam um convívio frente a frente fizeram com que muitas pessoas oprimidas, por exemplo, fossem vítimas de bullying ou excluídas de grupos. “Isso se pode afirmar, por exemplo, de pessoas negras, LGBT e cujos corpos não atendem ao padrão vigente. Os grupos em redes sociais, blogs, páginas de empoderamento nas redes e em outros lugares reúnem essas pessoas num novo espaço de sociabilidade. Muitas dessas pessoas encontraram nas redes pessoas como elas e, a partir daí, criaram grupos de amizade que, ainda que sem esse contato físico, mostraram que há lugar para afeto para esses corpos. A radicalidade na exclusão das redes é uma opção para quem se sente mais confortável assim, mas – sempre é importante reafirmar – cada um é responsável pelas decisões que toma.” (LM)


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