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Estado de Minas GEOPOLÍTICA

A China e a cultura Shanzhai

A cultura Shanzhai, o hábito de imitação, criou um terreno insólito e fértil para o forte desempenho industrial chinês


08/08/2022 07:06

Carros em porto chinês aguardam embarque em navio para exportação
Carros em porto chinês aguardam embarque em navio para exportação (foto: STR / AFP)


A revista Time publicou, em 1992, um artigo sobre como estaria o mundo em 50 anos.  A previsão sobre a China era essa: “A China não pode se tornar um gigante industrial no Século XXI. Sua população é muito grande e seu Produto Interno Bruto produto muito pequeno.”

A China pouco importava no mundo Ocidental, pois muitos acreditavam que “a China, em grande parte, era uma terra de aprendizes mecânicos, vinculados a regras” que só podiam imitar, não inovar. Os avanços na tecnologia da informação só poderiam ser feitos em sociedades livres, por pensadores livres, não sob regimes autoritários, como associavam o país. Não poderiam estar mais enganados!

A China incomoda, e muito, o Ocidente, na atualidade. A cultura chinesa Shanzhai, que é traduzida como a estratégia chinesa de imitar marcas registradas, incluindo (mas não se limitando) grifes internacionais de moda e produtos eletrônicos, foi o ponto de partida para o sucesso do país nas últimas décadas. 

Essa prática, durante muito tempo, gerou, internamente, muitas preocupações entre autoridades chinesas, que via essa cultura como algo que pudesse inibir a criatividade, perpetuando a dependência das inovações estrangeiras e foi condenada, mundialmente, pelas empresas do setor, por violar as leis de propriedade intelectual.

Em 2016, quando o fundador do Alibaba, Jack Ma, disse “o problema é que os produtos falsificados hoje têm melhor qualidade, com preços melhores que os produtos reais” as marcas estrangeiras internacionais reagiram com indignação (mesmo com alguns investidores externos compartilhando da mesma ideia de Jack Ma), colocando em evidência, novamente, a cultura Shanzhai. 

Alguns estudos e análises mostram outras interpretações ligadas a esse padrão de imitação, censurada tantas vezes e, praticada por outros países, em tempos distintos, como o Japão, do Século XIX, por exemplo. Entre algumas conclusões a que chegaram foi que somente dessa forma muitos consumidores tiveram acesso a determinados produtos, antes exclusivos dos mais abastados. A China foi vista como um Robin Hood moderno. 

Contrariando o mundo ocidental, que tende a monopolizar a indústria da tecnologia, definindo papéis claros entre fabricantes e designers, os chineses criaram uma forma muito particular de tratar a produção industrial. Há uma competitividade interna diferente, onde busca-se inovar por outros meios. Muitas vezes, os que produzem são também os responsáveis pelos design, criando uma nova relação produtiva, pouco comum no Ocidente. 

Isso permitiu o desenvolvimento de tecnologias híbridas. O que antes eram cópias dos produtos reais foram se transformando em tecnologias com novos referenciais chineses. Entretanto, diferentemente do Ocidente que protege suas patentes, o sistema chinês não perde tanto tempo com as delongas impostas pelas leis de propriedade intelectual. 

Foi esse ambiente de código aberto das tecnologias chinesas que impôs uma maior agilidade na busca por inovações, já que o rival podia melhorá-las rapidamente. Assim, criou-se um ambiente muito favorável ao desenvolvimento, cada vez mais rápido, de produtos melhores, com preços e qualidade competitivos. 

O Ocidente não consegue (ou não quer) ver isso como uma possibilidade real de dinamizar a criatividade. É claro que não se pretende aqui uma defesa da ruptura do respeito à propriedade intelectual. Enquanto as leis as protegem, isso não é questionado. Mas pode-se considerar que há outras formas de tratar o desenvolvimento industrial e garantir maior desempenho no setor, principalmente nas economias menos desenvolvidas. 

A China de hoje criou sua identidade industrial e compete em setores estratégicos da economia mundial. O presidente Xi Jinping já declarou, em vários momentos, a importância das inovações tecnológicas no campo de batalha do tabuleiro geopolítico global e enfatiza em seus discursos a necessidade de desenvolver as capacidades nativas, diminuir a dependência de tecnologia estrangeira e avançar nas tecnologias emergentes. O mais recente Plano Quinquenal coloca esse desempenho tecnológico como elemento chave para o futuro imediato do país.

O Ocidente insiste, incluindo os EUA, em uma visão ultrapassada da China e resistem em enxergá-la como um concorrente econômico e militar de primeira grandeza. Propaga informações de cunho duvidoso para ferir a imagem internacional chinesa. A tentativa de isolá-la, atualmente, em uma política iniciada pelo governo Trump e mantida por Biden pode resultar em grandes fracassos geopolíticos internacionais. 

Possivelmente, uma solução para o conflito da Rússia-Ucrânia não ocorrerá sem uma participação ativa do Senhor Xi, provavelmente, o único que pode convencer algo em relação a essa guerra a Vladimir Putin. O líder chinês ainda não se manifestou a esse respeito e só deverá fazê-lo quando puder negociar vantagens que possam interessar a China. Assim funciona o sistema. Não adianta atirar pedras. Vê-lo como um aliado pode trazer mais ganhos que perdas. 

A cultura Shanzhai tem uma ligação histórica com a produção industrial chinesa. Mas não a rege, isoladamente, hoje. Se não ocorrerem mudanças, de acordo com grandes analistas e investidores, em 2030, o país será a maior economia mundial, terá mais e melhores pesquisas, investimentos em estratégias de desenvolvimento, com implantação de novas tecnologias e infraestruturas de computação cada vez mais fortes. 

Os EUA e o Ocidente enfrentarão um adversário muito mais habilidoso e capaz do que a superpotência adversária da Guerra Fria. O desafio é maior, pois o rival geopolítico é demasiado mais forte econômica e tecnologicamente do que a União Soviética jamais foi. 

A China, gradativamente, estabelece sua nova face no seleto grupo de países  industrializados, ampliando o controle de setores estratégicos que vão dos semicondutores às tecnologias verdes, computação quântica e o 5G.  Pode não agradar, mas essa realidade não deve ser alterada pelos humores ácidos do Oeste. Aceitar esse novo cenário será inevitável, mesmo que dolorido para muitos. Como disse Oscar Wilde, “a arte começa onde a imitação acaba”. 

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