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Estado de Minas GEOPOLÍTICA

Fé, falência e a morte de Shinzo Abe

Atirador culpou o ex-primeiro-ministro do Japão por promover e apoiar o grupo religioso que levou a mãe à falência


11/07/2022 06:00 - atualizado 11/07/2022 08:23

Principal suspeito dos disparos, Tetsuya Yamagami, detido após matar Abe
Principal suspeito dos disparos, Tetsuya Yamagami, detido após matar Abe: ele afirmou ter agido sozinho e por estar insatisfeito com o 'senhor Abe' (foto: ASAHI SHIMBUN / AFP)
Em um país onde há uma arma a cada 100 habitantes (comparativamente nos Estados Unidos são 120 armas para cada 100 habitantes), a morte do ex-primeiro-ministro, Shinzo Abe, chocou a população do país e do mundo. 

A posse de armas é proibida no Japão. A permissão aos civis ocorre em casos muito específicos e após avaliações muito criteriosas de saúde mental e física, acompanhadas de verificação de antecedentes criminais e treinamento de segurança e, geralmente, destinada à prática de caça. As armas liberadas não são destinadas a matar humanos.

O cenário de um país pacifista foi construído desde o final da Segunda Guerra Mundial, após os horrores da guerra e das bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki. 

A sociedade pacífica japonesa está amparada pelo artigo 9.º da Constituição, promulgada em novembro de 1946, em vigor desde maio de 1947, que estipulava que “nunca se manterão forças terrestres, navais e aéreas, ou qualquer outro potencial de guerra”. 
Isso explica por que o Japão é oficialmente tão dependente, em termos de defesa, da proteção do “grande irmão americano”, já que há uma limitação à sua defesa direta. 

O texto antigo da Constituição sofreu algumas modificações durante o segundo governo de Shinzo Abe, em 2012. Havia um desejo claro do então Primeiro-Ministro de recuperar um Japão do pré-guerra, mais militarizado e envolvido com as questões de segurança do país. A nova proposta tinha como meta fortalecer as Autodefesas Japonesas, mesmo com a resistência da opinião pública e até do imperador Akihito (dentro daquilo que a sua função permite). 

Abe foi um defensor das forças armadas e da maior participação militar do Japão na manutenção da paz global. Ironicamente, foi vítima de uma arma de fogo improvisada, de produção caseira, durante um comício na cidade de Nara, no último dia 8 de julho.

O principal suspeito dos disparos, Tetsuya Yamagami, afirma ter agido sozinho e por estar insatisfeito com o “Senhor Abe”. As informações divulgadas pela imprensa japonesa apontam que o envolvimento da mãe do criminoso com um grupo religioso pode estar na raiz dos motivos que levaram ao assassinato de Shinzo Abe. 

A imprensa do país resiste, ainda, em identificar o referido grupo, mas tudo indica que a referência seja a antiga Igreja da Unificação ou a igreja dos Moonies (integrantes da “Seita da Lua”, devido ao nome do fundador coreano Sun Myung-Moon), o qual Abe integrava. 

A mãe do acusado havia feito uma grande contribuição financeira à igreja, o que teria levado a família à falência. Após o ocorrido, Yamagami, atualmente desempregado, teria feito várias tentativas de falar com a alta administração religiosa, mas todas foram frustradas. 

Shinzo Abe tinha conexão direta com o grupo, assim o suspeito, aparentemente, considerou justo um desfalque à organização a morte do ex-Primeiro-Ministro, um dos integrantes mais proeminentes da igreja, como forma de vingança pelas perdas causadas à família com a doação feita pela mãe. 

Evidentemente não se mata alguém por compor um grupo religioso que capta dinheiro dos fiéis. E essa possibilidade é apenas um dos pontos das investigações sobre o crime.  Há muitas perguntas ainda não esclarecidas sobre os fatores que levaram à morte de Abe, além de uma clara falha na sua segurança.

Sabe-se que a referida igreja é famosa por “vendas espirituais” de bens muito caros. O envolvimento de Abe com a seita já havia causado alguns contratempos legais no país. 

Em 12 de setembro de 2021, o ex-Primeiro-Ministro apareceu na tela de um evento on-line realizado por uma das organizações afiliadas a essa igreja. Na tela, durante a mensagem gravada, Abe enaltecia e louvava a instituição. 

Na época, a responsabilidade moral de Abe foi muito questionada ao elogiar a líder da igreja, a bilionária sul-coreana, Hak Ja Han Moon (que sucedeu seu marido, morto em 2012) e defender uma entidade que responde por muitos processos judiciais, acusada de forçar seus fiéis a realizarem grandes doações à Igreja da Unificação (atualmente, Federação da Família para a Paz e Unidade Mundial). 

Um dos objetivos desse evento era recrutar novos crentes. A participação de Abe foi logo após à de Donald Trump, um fiel defensor dos princípios propagados pela igreja. 

Seus líderes estão ligados aos grupos de extrema-direita. Os ensinamentos da igreja são uma mistura de anticomunismo e cristianismo. Os princípios centrais do movimento incluem casamentos pré-arranjados, sem homossexualidade ou divórcio e devoção suprema aos “verdadeiros pais”, os líderes da seita. 

A morte do fundador fragmentou o grupo. O filho mais novo, Hyung Jin “Sean” Moon, afastado da mãe, mantém laços estreitos com a família Trump. Sean Moon é fundador, nos EUA, de uma seita- World Peace and Unification Sanctuary -   que apoia, explicitamente, Trump.   

O próprio Sean liderou um grande contingente de seguidores durante a invasão e cerco ao Capitólio dos EUA, em 6 de janeiro de 2021. Nesse momento, está em turnê pelo Japão, com sua coroa de ouro, adornadas de balas, dando palestras.

No Japão, as organizações de advogados, que representam as ações de práticas fraudulentas de grupos religiosos, solicitam à população que não participe nem apoie os eventos que envolvam os Moonies ou as organizações relacionadas a eles.  

Em 17 de setembro, dias depois desse evento on-line, representantes da rede de advogados divulgaram uma carta aberta de protesto contra Abe, criticando-o por prestar apoio à líder atual da igreja e os impactos negativos que isso poderia acarretar à sociedade japonesa. 

No país de posse de armas praticamente zero, a morte de Abe surpreende e entristece. Mas traz à tona dissabores que os governos e comunidades se recusam a debater: o papel das seitas religiosas nos alicerces sociais e políticos. Talvez seja o momento, pelo menos, no Japão. 

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