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Estado de Minas GEOPOLÍTICA

Ucrânia e Rússia: o temor de uma guerra que ronda a Europa

Contra o pano de fundo de tensões em torno da Ucrânia, Putin exige publicamente que os ocidentais renunciem ao seu expansionismo militar na Europa Oriental


24/01/2022 06:00 - atualizado 23/01/2022 21:09

Pôster do presidente russo Vladimir Putin é usado como tiro ao alvo em trincheira em Luhansk, na fronteira com a Rússia
Pôster do presidente russo Vladimir Putin é usado como tiro ao alvo em trincheira em Luhansk, na fronteira com a Rússia (foto: Anatolii STEPANOV/AFP)
O cenário de tensão na Ucrânia indica que, provavelmente, o mundo tenha entrado na mais grave crise internacional desde o fim da Guerra Fria, ocorrida no início da década de 1990. É crescente o temor de uma invasão da Ucrânia pela Rússia. 

Há mais de 100.000 integrantes do exército russo na fronteira ucraniana e aumenta o contingente de soldados russos na Bielorrússia (aliada histórica do Kremlin), que faz limite ao norte com a Ucrânia, com o objetivo de “preparar para a luta”, a partir de fevereiro, deixando mais vulnerável a capital, Kiev, devido à localização mais setentrional da cidade.

Bem, farei um relato sucinto de uma história muito mais complexa do que a que se acompanha nesses últimos meses. Vamos por partes. 

A Ucrânia era uma das 15 repúblicas da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (ex-URSS), anexada, parcialmente, em 1919. Em 1922, Lenin absorveu sua fronteira na formação da URSS. Durante o regime Stalin, ocorreu o “Holodomor”, a grande fome, na década de 30, mas também foi quem levou à reconciliação entre ucranianos e russos. A atual configuração foi definida no cenário da Segunda Guerra Mundial apesar da insatisfação de muitos ucranianos com esses limites.

Com a sua independência e a desintegração soviética (1991), o país passou a formar, junto com a Rússia e o Cazaquistão, o tripé mais importante da geopolítica herdada da ex-superpotência socialista que, junto com os EUA, formou a bipolaridade político-econômica, que se constituiu no pós-Segunda Grande Guerra.  

É certo que o divórcio pós-soviético de 1991 foi realizado pacificamente, e a Ucrânia teve, entre 1991 e 2014, fronteiras indiscutíveis. Mas, desde 2014, o governo ucraniano perdeu o controle de parte das regiões de Luhansk e Donetsk no leste (a parte ucraniana da bacia de carvão do Don, o Donbass) para grupos separatistas, apoiados pela Rússia. 

A república ucraniana possuía, durante a fase soviética, uma boa infraestrutura industrial e bélica, incluindo arsenal nuclear, mas em 1994, como resultado de um acordo intermediado pelos EUA, Inglaterra e Rússia, o país abdicou desse arsenal nuclear. Para persuadir os ucranianos, os EUA e a Grã-Bretanha assinaram com os russos acordos que garantiriam a integridade do território em troca da entrega das armas nucleares à Rússia. 

Algo semelhante ocorreu durante os acordos da reunificação alemã (1990). Os países ocidentais, especialmente os EUA, asseguraram, informalmente, que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a poderosa aliança militar ocidental, não se expandiria em direção à antiga Europa do Leste Socialista. 

Esses acordos, aparentemente, esquecidos tanto por Putin, quanto pelo Ocidente, estão na raiz dos problemas enfrentados, no momento, na região.

As condições econômicas que se seguiram à independência causaram forte instabilidade nos âmbitos sociais e econômicos do país. Os índices inflacionários elevados, somados à corrupção política, agravavam ainda mais esse cenário. Todavia, os planos de recuperação da economia, adotados no final da década de 1990, permitiram uma retomada do crescimento econômico,  que chegou a atingir dois dígitos no último decênio.  

Politicamente, o país apresenta uma complexidade muito maior, com a diversidade étnica do país e o predomínio de ucranianos e russos étnicos. Há uma clara divisão entre o Leste e o Oeste do país. O Leste é de maior influência russa, especialmente a região de Donbass, e o oeste é mais pró-ocidente e busca uma aproximação com a União Europeia (UE). 

Essa divisão se mostrou clara em 2004, quando ocorriam eleições presidenciais no país. Os dois principais candidatos eram Viktor Yushchenko e Viktor Yanukovych. Yushchenko era o candidato cuja política era mais direcionada para o Ocidente e defendia maior proximidade com a União Europeia (UE). O adversário Yanukovych era pró Rússia, de Vladimir Putin.
 
Na época, as pesquisas de opinião davam clara vitória a Yushchenko, em desacordo com os interesses russos. Foi nesta época que Yushchenko foi envenado com dioxina, que causou graves sequelas à pele e ao seu organismo. Apesar da gravidade, ele sobreviveu. A prática de envenenamento dos opositores de Putin é bastante corriqueira na Rússia embora o governo negue envolvimento com esses casos. 

Quando os resultados finais das eleições foram divulgados, Yanukovych venceu com uma vantagem de 3%. Os sinais de fraude eram evidentes. Esse fato levou uma parcela expressiva da população ucraniana às ruas em protesto durante o mês de dezembro de 2004, enfrentando o rigoroso inverno típico dessa época no país. 

A Praça da Independência foi tomada pelos simpatizantes do presidente derrotado, vestidos com roupas e bandeiras de cor laranja. Esse movimento ficou conhecido como Revolução Laranja (a cor de campanha de Yushchenko). O resultado foi nova eleição em 2005, com vitória de Viktor Yushchenko.

O novo líder enfrenta a resistência russa, que tenta dificultar seu governo. O fechamento dos gasodutos que abastecem o país e outros países europeus mostra a disposição de Putin no intuito de enfraquecer o novo governo. No poder, Viktor Yushchenko inicia os processos de aproximação com a UE. Contrariou os interesses russos e dividindo, ainda mais, a nação. Foi cogitado inclusive separar o país, de acordo com as áreas de influência Ocidente-Rússia, o que acabou não acontecendo.

Perdas estratégicas importantes


A Ucrânia é estratégica pelos dutos que cruzam o país e também por ser  principal fronteira de acesso da Rússia à Europa uma vez que os países bálticos –Estônia, Letônia e Lituânia- são hostis e a Bielorrússia, a grande aliada, se encontra isolada pela Europa devido à ditadura, de quase três décadas, que domina o país. Perder a influência sobre a Ucrânia significa perdas geoestratégicas importantes para Putin.

Em 2014, uma nova onda de manifestações teve início na Ucrânia depois que o governo do presidente Viktor Yanukovich (o candidato envolvido com a fraude de 2004, eleito, de forma legítima, em 2010) desistiu de assinar, em 21 de novembro de 2013, um acordo de livre-comércio e associação política com a União Europeia (UE), sob a alegação de que havia decidido buscar relações comerciais mais próximas com a Rússia, seu principal aliado. 

Novamente, a Praça da Independência tornou-se palco, inicialmente, de manifestações pacíficas, que evoluíram para fortes enfrentamentos entre manifestantes e policiais.  Com a escalada da violência, um acordo foi assinado entre Yanukovich e os líderes da oposição, no dia 21 de fevereiro de 2014, determinando a realização de eleições presidenciais antecipadas e a volta à Constituição de 2004, o que reduziria os poderes presidenciais. 

O acordo também previa a formação de um "governo de unidade", uma tentativa de solucionar a violenta crise política. No dia seguinte o presidente, alegando “golpe de estado”, abandona a capital Kiev. Dias depois aparece na Rússia. A Ucrânia exigia sua extradição – havia sido condenado pela morte de civis -, a União Europeia congela os ativos do ex-líder. 

A postura da Europa e dos EUA diante dessa crise gerou discordâncias entre os analistas, na época.  Ao apoiarem os manifestantes/rebeldes, foram contrários a um presidente, legitimamente, eleito, mesmo que incompetente para a função. Para esses críticos, era uma violação de um processo democrático, que esses mesmos países apoiam em outros contextos. 

A maioria da população defende uma proximidade com a UE, mas não significa que desejam se isolar da Rússia. O país é um importante aliado econômico e principal fornecedor de gás para a Ucrânia e Europa. 

Esperava-se uma solução gradativa dos problemas no país, com novas eleições definidas para maio daquele ano. Mas, simpatizantes de Yanukovich, principalmente, na Península da Crimeia (região do Mar Negro, onde está a cidade independente de Sebastopol e a instalação da frota russa), doada, em 1954, à Ucrânia por Nikita Khrushchev (sucessor de Stálin e ucraniano), resistiram às mudanças de governo. A população de dois milhões de habitantes com predomínio de russos étnicos tomou prédios e gritou apoio à Rússia. 

Supostamente, em defesa desses russos étnicos, Putin envia tropas para a região da Crimeia, que aprova no parlamento um referendo de adesão da península à Rússia. Esse referendo não foi aprovado pelo governo ucraniano e por nenhum outro país do mundo (exceto pela Síria, provavelmente, devido à ajuda da Rússia, nos confrontos impostos pela Primavera Árabe no país). 

Os EUA exigiram a retirada das tropas russas, mas Putin foi irredutível e as tropas permaneceram na região e ocuparam a região de Donbass, onde há predomínio de russos, desde então. Há mais de sete anos a região enfrenta uma guerra entre as forças ucranianas e russas.  

O Ocidente impôs severas sanções à Rússia, com o objetivo de isolá-la internacionalmente e, equivocadamente,  muitas ameaças. Vladimir Putin tem por hábito não ceder às ameaças e buscou outros aliados, como a China, e conseguiu se manter, relativamente, mesmo com os atropelos. 

Putin condena a expansão da OTAN em direção aos países que considera sua órbita de influência direta, após o desfecho da URSS e exige que o compromisso informal assumido em 1990 seja respeitado. Não há nada escrito sobre isso. Na época existia o Pacto de Varsóvia (aliança militar socialista) e não se acreditava no desfecho que se seguiu em 1991, quando junto com a URSS, essa aliança se desintegrou. 

Documentos sigilosos dessa época, liberados há alguns anos, comprovam esse compromisso da OTAN de não se expandir nessa direção. Não foi cumprido. Hungria, Polônia e República Tcheca aderiram à OTAN, em 1999. Em 2004, foi a vez da Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia.  

Desde então, Albânia, Croácia, Montenegro e, finalmente, a República da Macedônia do Norte, em 2020, também se tornaram membros da Aliança e se beneficiam de sua proteção em caso de conflito com um país terceiro, como estabelece o Artigo 5 da OTAN, que diz que uma agressão a um membro se estende a todos os demais.

Esse avanço da OTAN, em direção à Ucrânia causa revolta ao líder russo e alimenta as tensões que se estendem desde 2014, quando eclodiu a Revolução Maidan, que resultou, entre outras coisas na anexação da Crimeia. A Rússia exige que a OTAN se comprometa a nunca incluir a Ucrânia ou outros novos membros, retirar as forças do leste europeu e voltar ao seu tamanho menor pós-Guerra Fria!

População idosa e baixo índice de natalidade 


Além dessa questão histórica, há também uma de ordem demográfica. A população russa recua num ritmo muito acentuado. As altas taxas de mortalidade, somadas aos baixos índices de natalidade implicam uma queda do crescimento vegetativo russo. Em média, a cada ano, morrem 700 mil russos, que não são repostos. 

Há também uma redução dos russos étnicos (a Rússia considera a nacionalidade originária aquela que é baseada no Jus Sanguinis, estabelecida quando um dos pais ou ambos têm nacionalidade russa, independentemente do local de nascimento) nas antigas repúblicas. Muitos emigraram desses locais, fugindo da perseguição, instabilidade e insegurança impostas pelas menores possibilidades econômicas e pela discriminação a que estão expostos. A “russificação” iniciada com os czares e mantida durante o regime socialista, principalmente, com Stálin, está perdendo representatividade. 

Existe uma outra tendência geral na demografia étnica: o aumento, em quase todas as regiões russas, do número de imigrantes de outros países, principalmente da ex-URSS, China e Vietnã. Nos últimos vinte anos, 10 milhões de migrantes se estabeleceram permanentemente na Rússia; além disso, cerca de 10 milhões de trabalhadores estrangeiros estão no país a cada ano. De acordo com algumas estimativas, este último número pode ser duas vezes maior, pois não há estatísticas confiáveis de migração no país. 

Nessas circunstâncias, as fobias estão se espalhando entre a população e vários cálculos políticos dão corpo a uma visão muito sombria da imigração: os migrantes são onipresentes nas grandes cidades russas, aumentando os índices de criminalidade e ocupando o mercado de trabalho em detrimento da população local.

Somado a todo esse cenário, há a obsessão do líder russo pela Ucrânia. Putin estende seu reinado a este país. A forte relação identitária e emocional de Putin com esse território está na base das crescentes tensões. O presidente russo não definiu seu destino político em 2024, mas sabe que não é imortal e quer deixar um legado de preservação das terras russas, que considera sua missão histórica. A Ucrânia é um obstáculo a essa pretensão. 

Sem sinais de vencedores


As negociações continuam, mas não avançam no ritmo esperado. Parecem um jogo de gato e rato para ganhar tempo e aumentar o desgaste. Não há sinais de quem esteja vencendo. Os russos aumentam a presença de soldados nas fronteiras e o Ocidente envia armas, mísseis antitanques Javelin e dinheiro considerando a possibilidade de uma incursão russa no país (os EUA permitiram apoio bélico dos membros da OTAN no Báltico e libera 200 milhões de dólares em assistência defensiva letal à Ucrânia). 

No sábado (22/01), o Reino Unido expôs um plano dos russos,  indicando que Putin estava preparando um aliado para colocar no poder e destituir a liderança do presidente pró-ocidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky. Tal anúncio aumentou o medo de uma guerra iminente. Embaixadas estão sendo esvaziadas devido a esse risco. 

Entretanto, apesar desse cenário, a possibilidade de uma guerra imediata pode não ser a única estratégia de Putin. É pouco provável que uma invasão ocorra nos próximos dias. A realização dos Jogos de Inverno em Beijing, entre os dias 04 a 20 de fevereiro, pode impedir essa ação. Putin não pretende tirar a atenção para o evento com uma guerra. A China é importante para reduzir o isolamento que o Ocidente quer impor ao país. Uma guerra tiraria o foco do evento. 

Há outras possibilidades de enfraquecer o governo hostil de Zolensky, sem atacar a fronteira. O Ocidente está concentrando nesse ato, enquanto isso a mente imprevisível do líder russo pode optar por outras estratégias. Putin pode usar meios como a guerra cibernética (já iniciada), fortes campanhas de desinformação, setor em que a habilidade russa é inegável, por exemplo. 

As cartas estão sobre a mesa. Estão sendo embaralhadas, mas não foram cortadas. Em um cenário perfeito, os russos deveriam reconhecer a legitimidade das nações, em especial, a Ucrânia, afinal foi esse o compromisso assumido, em 1994, e as agressões serem controladas (é importante lembrar da Geórgia, em 2008). Isso se aplica ao Ocidente e à OTAN: cumprir os acordos (informais, mas verdadeiros) estabelecidos, em 1990, de respeitar as antigas fronteiras de influência, estabelecidas em Yalta, num longínquo fevereiro de 1945.  

O uso da força não deveria ser adotado. As maiores perdas serão de civis. Se para isso for necessária mais autonomia às províncias do Leste, em um processo democrático claro e respeitado por todos os envolvidos, que assim seja. Além de negociar e estabelecer direitos plenos dos ucranianos, os interesses dos cidadãos devem estar sempre à frente de disputas geopolíticas. 

Deveriam lembrar de Maquiavel,  em sua obra “ A Arte da Guerra”: na guerra, a disciplina vale bem mais do que a exaltação.

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