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A vida pode ser mais simples

Naquele ponto, eu já estava encantada com Ítalo, tão educado e responsável, assumindo uma obrigação que deveria ser dos adultos


09/01/2022 04:00 - atualizado 07/01/2022 08:58

desenho de um menino com um sanduíche na mão
A vida pode ser mais simples do que tentamos fazer



Estava sem ideias para escrever a coluna nesses primeiros dias do ano. Saí para caminhar perto de casa. Tomar um ar, limpar a mente e ativar a criatividade. Sempre funciona. Em menos de dois quarteirões, a crônica veio andando até mim. Tinha entre 10, 12 anos, pele negra, topete descolorido. Vendia bijuterias: pulseiras, arcos, colar.  Quanto custa esse aqui? Cinco reais.

Como você se chama? Ítalo. Gostei do nome, forte e imponente, difícil de esquecer. Perguntei se o dinheiro ficaria para ele, caso eu comprasse uma pulseira. Não senhora. Entregaria todo o valor para a mãe dele, que era faxineira e fabricava as peças para aumentar a renda. Soube que ela ganhava pouco e que a conta de luz estava muito cara. Dá mais de 200 reais, a senhora acredita?
 
A chuva tinha dado uma estiada. Continuei andando. Ele veio atrás. Seguimos conversando. Perguntei sobre o pai dele. Trabalhava ‘de’ motoboy. Fazia umas corridas aqui e ali, mas também ganhava pouco.

O casal tinha dois filhos. Ele e a irmã, que era mais velha, mas não adiantava nada. “Ela tem a cabeça de uma criança de 9 anos”, explicou o garoto, que nesse momento, me pareceu ter uns 30.

Parei em frente à padaria. Pensei em comprar algo de comer para o Ítalo. Ele tinha dado respostas satisfatórias, mas evito doar dinheiro na rua. Já fiz reportagens sobre crianças exploradas pelos próprios pais ou por traficantes, que colocam os menores de idade para trabalharem para eles. Denunciei o caso da mulher que ‘alugou’ um bebê para sensibilizar os motoristas a darem esmolas nos sinais de trânsito.

Perguntei a Ítalo se estava com fome. Ele fez que não com a cabeça, mas chamei-o para me acompanhar até o balcão da padaria. Sugeri a ele que pedisse uma coxinha, mas o menino preferiu o pão de batata gigante, recheado de carne moída. Pedi um café com leite para mim e recomendei que ele tomasse outro, mas Ítalo recusou a oferta. Preferia Coca-cola.  Ele era honesto.

Vamos lanchar naquelas mesinhas ali fora?, indiquei. Enquanto o menino foi saindo com o lanche, aproveitei para levar mais meia dúzia de biscoitos de queijo. Passei as compras no caixa, mas estranhei o valor, mais baixo do que o normal.

A moça do caixa deu um sorriso amigável e apontou para a dona da padaria, que assistia à cena de longe. Ela havia autorizado um desconto especial.  Agradeci com o olhar e saí.

Ítalo já estava sentado à mesa. Na cadeira ao lado, colocou o aparador com as bijuterias. Sentei-me na frente dele e comecei a tomar a bebida quente, que ajudou a diminuir o frio. O menino lutava para abrir os pacotinhos de catchup e de maionese. Havia pegado dois de cada. Ofereci ajuda, mas ele já estava abrindo com os dentes, espirrando molho de tomate para todo lado. Lembrei que Ítalo ainda era uma criança.

O menino mordeu o salgado com vontade, lambuzando-se todo. Seus olhos brilhavam de satisfação. Você ainda não tinha almoçado, não é Ítalo? De boca cheia, ele concordou com a cabeça.  Calculei que já devia ser umas quatro horas da tarde. Ítalo seguiu comendo, enquanto eu continuava com o interrogatório.

Contou que, sim, estava na escola. Eu quis saber em qual ano para checar se ele falava a verdade. Ele estava no 7º ano e estudava de manhã. “A aula vai de 7h45 às 11h45, mas agora estou de férias”, observou.

Com meu treino de jornalista, tentei detectar algum furo na história. Nada errado. Ítalo respondia a tudo, com tranquilidade. De vez em quando, parava para cumprimentar o flanelinha, o entregador do ifood, a moça que andava com o cachorro.

“Conheço todo mundo aqui no meu trabalho”, disse ele, com orgulho de ter um emprego, de ajudar a sustentar a casa. “Daqui a pouco vou vazar. Hoje o dia está muito fraco”, comentou.

Naquele ponto, eu já estava encantada com Ítalo, tão educado e responsável, assumindo uma obrigação que deveria ser dos adultos. Queria ajudá-lo, pois ele precisava voltar para casa com um valor já determinado pela mãe. Tentei imaginar o melhor jeito de fazer isso. Comprar todo restante das bijuterias? Dar a ele um dinheiro? Fazer uma compra na padaria para ele levar para casa?

– Ô dona, me dá um trocado para comprar comida? Olhei para o lado. O pedido vinha de um morador com trajetória de rua. Mancava de uma perna, camisa rasgada na manga, sofrido. Minhas dúvidas dobraram de tamanho. Fiquei totalmente sem ação. Sem pensar duas vezes, Ítalo resolveu o problema. “Chega mais, colega. Esse salgado aqui é bem grande, dá para nós dois”, disse.

Antes que eu pudesse interferir, o menino foi logo repartindo o pão de batata, com as mãos mesmo. Botou mais catchup e maionese e entregou a outra metade ao homem, que foi embora, feliz. Depois, virou para mim e continuou contando casos, naturalmente.  Permaneci congelada, me sentindo ridícula por desconfiar tanto, pensar tanto, calcular tanto.

A vida pode ser mais simples. É só pegar leve com as situações, compartilhar mais, agir com o coração. Seguir o fluxo. O ano de 2022 começou bem.



Saiba mais sobre xamanismo no canal
Chá Com Leveza (https://youtu.be/-Rr0i8i8_KM)
*Sandra Kiefer assina esta coluna quinzenalmente

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