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Estado de Minas TIRO LIVRE

De mictório a piada machista: o futebol feminino ainda passa por isso

Ainda hoje, há pessoas do meio que defendem que os uniformes das atletas de futebol sejam mais curtos, mais justos, mais decotados. Sim, em pleno século 21


30/08/2019 04:00 - atualizado 29/08/2019 22:00

Além da falta de estrutura, mulheres enfrentam muito preconceito para jogar futebol
Além da falta de estrutura, mulheres enfrentam muito preconceito para jogar futebol (foto: YASUYOSHI CHIBA/AFP - 15/2/14)


A cena é corriqueira em qualquer esporte. Meninas chegando para treinar, seguem para o vestiário, para trocar de roupa. Mas aí vem uma diferença: no banheiro, só mictórios. Nada de vaso sanitário. Isso ocorreu há pouco tempo, em um campo de futebol da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Você pode achar que não há nada de mais nisso. Mas há sim. Já se passaram 40 anos que o futebol deixou de ser proibido para mulheres no Brasil (e aqui nem vou entrar na seara do absurdo que é ter existido uma lei proibindo a prática de algum esporte segundo gênero), mas essa cena retrata bem como a modalidade ainda é pensada para homens. Continuamos parados no tempo.

Esse caso, acreditem, não é fato isolado. É apenas mais um entre tantos que mostram como a mulher não está inserida no contexto do esporte bretão. Desde as pequenas coisas, como o falado mictório, àquelas que são básicas em um time masculino e praticamente inexistem no feminino, como campos para treinar, material esportivo, equipes de apoio (como roupeiro, massagista, etc.) e por aí vai. É como se o profissional do feminino se equivalesse, nas limitações de estrutura, às divisões de base do masculino. Só a cobrança por resultados, inclusive por parte dos torcedores, que tem como balizamento o profissional do masculino mesmo.

Nos últimos dias, em conversa com vários personagens do futebol feminino para entender o estágio em que estamos e colher informações para a matéria que foi publicada nessa quinta-feira, no Estado de Minas,ouvi inúmeros relatos que dão uma noção clara de como temos muito chão pela frente para ser uma pátria, genuinamente, de chuteiras, e fazer jus à frase cunhada pelo gênio Nelson Rodrigues.

Querem outro exemplo? A insistente erotização das jogadoras. Ainda hoje, há pessoas do meio que defendem que os uniformes das atletas de futebol sejam mais curtos, mais justos, mais decotados. Essa observação também foi feita há pouco tempo. Sim, em pleno século 21. Aqui entra uma parcela da imprensa que adora eleger uma musa em meio às competições, destacar atletas pela beleza e não pela atuação, e estimular esse tipo de associação. Felizmente, é uma onda que parece estar, pelo menos, perdendo força.

Ouvi também testemunhos de vários episódios de piadinhas machistas dentro dos clubes em relação à presença das mulheres no mesmo ambiente dos homens. Como se elas estivessem ali com interesses alheios à prática do futebol. Se essas pessoas soubessem a dificuldade que é para uma menina conseguir vaga em um time para treinar, o sacrifício que ela por vezes precisa fazer (assim como os meninos também), certamente encarariam o fato com mais seriedade.

Outro estigma que ainda assola o futebol feminino, segundo quem trabalha na área, vem da ideia preconcebida de muitas garotas de que para ser aceita no grupo é preciso passar por um processo de masculinização. E aí entra um trabalho, até psicológico, de mostrar a elas que, dentro de campo, o que importa é o talento. É a dedicação. A orientação sexual, qualquer que seja, fica fora das quatro linhas, restrita à vida pessoal de cada uma.

Quanto mais a gente se aprofunda nesse universo, mais toma consciência de quão bacana é o trabalho de quem batalha por gramados mais democráticos. De quem está ali, no dia a dia dos times, profissionais e amadores. Não só mulheres, mas também homens – e há vários, em Minas inclusive, que compram a briga juntos para que o esporte evolua. Que compreendem a dimensão do que fazem.

É uma luta quase literal. Desde quem está na gestão, em busca das melhores condições possíveis (nem sempre as ideais) para suas equipes. De quem sonha em viver desse esporte, na área técnica, na médica, na diretiva... Das jogadoras, que querem tão somente tirar seu sustento do futebol. As mulheres, que ainda são minoria, querem é isto: espaço para trabalhar. E respeito. Que o futebol feminino não seja lembrado apenas em época de Olimpíada e de Copa do Mundo e não se resuma sempre à genialidade solitária de Marta.



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