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Do amor à desilusão com as panelas ao nem tão reconfortante encontro com o delivery

O ator Odilon Esteves escreve no Diário da quarentena suas aventuras e desventuras na cozinha


24/09/2020 04:00


Nos primeiros meses da quarentena, na divisão de tarefas aqui em casa, de segunda a sexta fiquei incumbido do almoço. Assumi satisfeito a cozinha. Embora pouco saiba cozinhar, gosto do fogão, tem dia em que até fica boa minha comida. E tento sempre caprichar na apresentação dos pratos, ainda que seja arroz e feijão, e assim, mesmo quando a comida não está exatamente saborosa, ao menos já dá gosto vê-la bonita.

Minha mãe me ensinou receitas, vi vídeos na internet, imitei pratos de amigos, assimilei várias dicas, vinha melhorando o tempero até que... teve uma semana em que cozinhar se tornou quase um martírio. A obrigação diária foi corroendo meu entusiasmo, embotando qualquer impulso criativo, e já não me vinha à cabeça nem ideia nem vontade de cozer sequer uma ervilha.

Minha farra com os grãos e folhas de alface, os pratos decorados, a invenção ocasional de uma sobremesa, tudo isso me foi, pouco a pouco, sumindo. Depois de quatro meses, eu e as panelas fomos da lua de mel à desilusão. Disse pra mim mesmo, com aquela convicção inicial de quem acha que encontrou um rumo pra vida: "Vou recorrer ao delivery". E foi o que fiz!

Por três dias consecutivos, honrei minha obrigação com o almoço, descendo as escadas do prédio (tinha lido que o corona ficava suspenso nos elevadores), buscando no portão a encomenda quentinha, subindo de volta, degrau por degrau, os 12 andares até meu apartamento, e tendo, por fim, apenas o trabalho de levar aquela comida à mesa ou, antes, requentá-la para servir. E ainda tinha, de lambuja, no sobe e desce de escada, feito um pouco de exercício físico. Mas três dias foram suficientes para perceber que aquela solução era temporária, que não poderia ser, por muitas razões, uma saída.

As demandas domésticas se acumulam sem esforço. Você tira a poeira, daí a dois dias nova poeira vem tranquila assentar-se sobre os móveis, os objetos, o piso. Você lava as vasilhas, daí a pouco lá está a pia outra vez lotada. Você faz comida, daí a três ou quatro horas a fome bate novamente à porta do seu estômago. E limpa-se banheiro! E lava-se roupa! E tem-se que fazer compra no supermercado! De novo e de novo e de novo, como num moto-contínuo.

Alguém me dirá: "Mas isso é da dinâmica da vida. Sempre foi assim. Sempre será". Ou ainda: "Quisera que os problemas de todo mundo se resumissem a esse seu desconforto". Pois é. Eu sei que é um privilégio poder ficar em casa, ter casa, ter comida. E diante da desigualdade e da fome, diante do desmatamento e dos incêndios florestais criminosos, diante da necropolítica e dos negacionistas, dos crimes perpetrados por políticos e líderes religiosos, enfim, diante de todos esses desastres que vêm assolando nosso país no dia a dia, qualquer pequeno problema parece mesmo besta. E talvez seja!

Mas foi justamente por esse impasse cotidiano besta, para o qual não estava encontrando saída, que percebi, pela primeira vez por uma perspectiva mais íntima, o lugar de algumas mulheres que fazem ou fizeram parte da minha vida. Dedicadas ao lar, aos filhos e aos maridos, ou a uma "família adotiva", exerceram sem pestanejar, sem dar o grito, a função de dona de casa, de empregada doméstica, se empenhando neste trabalho infinito, invisível e pouquíssimo reconhecido. E não somente durante uma pandemia. Foi, e para algumas delas continua sendo, uma obrigação de toda a vida.

Tenho tias que tiveram que abrir mão de seus empregos por exigência dos meus tios. Vizinhas e amigas que já tiveram que ouvir de seus maridos acusações veladas de que a feira estava durando pouco, de que os produtos de limpeza estavam sendo usados com desperdício, de que os gastos domésticos estavam pesando em demasia. Uma mistura de ignorância com desconhecimento e mesquinharia. E se, um ou outro dia,   lhes entornava o caldo, algumas delas talvez não pudessem sequer recorrer à saída eventual de pedir um delivery.

E tarefas domésticas são ingratas. Se você cumpre todas as demandas, trabalhando noite e dia, negligenciando suas próprias necessidades para deixar tudo um brinco, o máximo que você consegue é que a casa esteja em seu estado esperado. O serviço de casa só costuma ser notado na falta, quando não tem mais cueca limpa no guarda-roupas, nem água na geladeira, nem talher usável na gaveta e nenhum copo no armário.

Quando acabar a quarentena, hei de me despedir das panelas, ao menos de minha obrigação diária com elas. Mas me pergunto sobre aquelas mulheres que, há séculos, estão sujeitas a esse cenário. Quando desenvolverem a vacina, a "quarentena" delas também acaba?

Por Odilon Esteves
ator

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