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Estado de Minas Diário da quarentena

Pandemia exige adequação a novas terminologias

Escritora Cidinha Ribeiro mostra como está se adaptando ao que agora considera seu novo normal


25/07/2020 04:00


Cidinha Ribeiro
escritora

Adapto-me aos poucos à nova terminologia surgida para suprir necessidades rotineiras e emergências provocadas pela pandemia. Meu vocabulário não era desprezível. Incluíam-se nele até proparoxítonas. O vírus revirou tudo. Procuro e não acho alguns termos com os quais me relacionei bem a vida toda.

Apareceram recentemente vocábulos de uso geral obrigatório, aos quais vou me adaptando com certa dificuldade. Digo live, comorbidade, videoconferência, Zoom, aplicativo, plataforma. Não me dobro às evidências. Disfarço e tento contextualizar essas palavras com naturalidade. Um dia, trago meu vocabulário antigo de volta. Ah, se trago! Transito melhor entre palavras centenárias e lugares-comuns.

Nunca pensei que minhas doenças de idosa se chamassem comorbidades. Gostei do nome. Nada contra. A bem da verdade, achei chique ser possuidora de tal condição e não apenas de achaques de velhos. Aprendi a conviver com meus limites. E fui levando a vida. De repente, me dizem que posso morrer de uma hora para outra porque tenho comorbidades. Isso não, e não. Pensando bem, dispenso a honraria da nova nomenclatura.

Fujo do vírus como o diabo foge da cruz. Não saio de casa para cortar o cabelo, fazer a sobrancelha, ir ao supermercado, ao shopping, nada. Estou me transformando numa mulher esquisita. Minhas roupas da quarentena estão transparentes. Os tecidos esgarçaram-se depois de tantas lavagens. Uso-as por gosto. Gosto de me sentir sensual quando ninguém pode me ver.

Sem recursos especiais, vou me aperfeiçoando para manter a dignidade, o porte altivo, a cabeça erguida. Minha filha se queixa de ver apenas o teto nas chamadas de vídeo que fazemos. Ela pensa que não sei posicionar a câmera do celular. Não me importo. Se eu quiser, me mostro de corpo inteiro. É que, às vezes, não estou preparada para expor meu visual na internet. Sou discreta e prezo a intimidade quando 
me convém.

A conexão pelo Zoom me causa alguns transtornos, devo confessar. A questão básica são as diferenças no passo a passo. Não adianta anotar as orientações recebidas. Nem sempre funcionam. E meu caderno de notas feitas à mão está cheio até as bordas. Penso em sugerir uma normatização decente para aplicativos, reuniões virtuais, cursos on-line. Sei que alguns milhares de pessoas serão beneficiados. A quem devo encaminhar a reivindicação é o dado que impede a continuidade do processo.

Com restrições ao convívio social, tenho conversado comigo mesma para me distrair. Nos tornamos mais amigas, eu e eu mesma. Descobri coisas interessantes nesses solilóquios. Às vezes nos colocamos questões filosóficas com palavras de outrora. Também conversamos sobre amenidades. Jogamos conversa fora.

Tornei-me a faz-quase-tudo da minha casa. Demorei um tempo para me adaptar à nova condição. Antes, dona de meu tempo, passei a escrava dele. As vasilhas sujas me assustam. Lavo todas e elas voltam.  Lavo todas e elas voltam. Infinitamente.  Vou mandar exorcizar minha cozinha assim que puder encontrar um padre. Também varro, mas para me vingar do vírus, danço com a vassoura. Com palavras de domínio público, lhe digo que é preciso manter o coração leve e a alma limpa de pó.

Vai passar. Repito o monólogo e acredito nele.

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