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No mar aberto da pandemia, Augusto muda a rotina de sua vizinha

Professora Fernanda Marçola escreve seu diário com delicadeza e inocência de uma criança


22/07/2020 04:00


 
Diário da quarentena
 
manobra radical

fernanda marçola
professora
 
Eram mais ou menos umas cinco horas da tarde, eu trançava pela casa, distraída com alguma coisa, quando o ouvi pela primeira vez.
– Oláááááááááá!
A voz aguda vinha lá de fora, entrava pela janela do apartamento e me seguia pelos cômodos. Curiosa com a insistência do chamado, botei a cara para fora para ver quem era. Foi assim que conheci Augusto, o vizinho do prédio da frente.
 
Passei os olhos pelos prédios ao redor para entender quem exatamente o garoto estava chamando. Não havia ninguém. O cumprimento de Augusto não tinha um destinatário preciso. O menino lançava esse olá como uma mensagem na garrafa no mar aberto da pandemia, um esquema meio “quem pegar, pegou”. Peguei, claro. Imediatamente.
 
Respondi com um aceno de braço e gritei um “ei!”. Ele, então, olhou pra mim, o corpo inteiro sorrindo. Consegui extrair uma breve apresentação, Augusto, 5 anos, ele me respondeu assim, meio afobado. Não tinha tempo a perder com essas cerimônias, precisava me dizer uma coisa muito mais importante: tinha aprendido uma nova modalidade de salto. “Quer ver?”
 
Sem esperar minha reação, virou-se pra dentro do apartamento e deu um pulão. Entrei em pânico. O salto tirou o menino do meu campo de visão e eu só conseguia pensar no bichinho com a cabeça rachada, todo ensanguentado. Segundos depois, o danado me reaparece, todo descabelado, mas sem sangue. “Viu como foi radical?” Sorri, aliviada.
 
“Foi muito radical, Augusto, estou impressionada com o radicalismo desse pulo. Você é do circo?”
Pronto: pronunciei as palavras mágicas. Os olhos de Augusto cintilaram e eu, sem saber, tinha acabado de abrir o portal dos 277 saltos e mortais e duplos carpados cada vez mais extremos que, evidentemente, eu nunca consegui ver.
 
Mas me mantive firme na janela, encorajando cada uma das novas manobras e gritando palavras de admiração. “Nossa, Augusto, quê que é isso, esse último foi demais!”
“Fica olhando então que agora esse aqui vai ser mais louco!”, e eu fazia uma cara de medo, ele gargalhava. Mergulhava de novo lá para dentro e a cada desaparecimento eu rezava para que o quarto fosse todo acolchoado. Mas ele sempre voltava inteirinho, graças a Deus, cada vez mais ágil e orgulhoso de suas estrepolias.
 
Desde então, todo dia, pontualmente, as baladadas de Augusto anunciam as cinco horas: oláááááááááá! Se demoro um pouco mais para aparecer na janela, a sustentação mais longa do áááá me acena uma certa impaciência.
 
“Augusto, meu amor, agora eu não posso, estou dando aula!”, “Mas esse vai ser rapidão porque já treinei muito!” “Tá bom, então manda ver!”, e lá vai Augusto para fora do meu quadro, e lá vai eu rezar para essa mãe me perdoar se o menino se estropiar, e lá vem ele com tudo no lugar, menos o cabelo, cada vez mais desgrenhado.
 
Não me chama pelo nome, nunca chamou, apesar de eu já tê-lo dito um punhado de vezes. Augusto confia na força irresistível de seu oláááááááááá, sabe que ele é um cuco mágico que vem bater lá naquele quartinho onde estão guardadas as minhas lembranças mais cheias de ternura. Sabe que o seu chamado perfura o torpor da vida de gente grande e vem me despertar para o que realmente importa: a sua mais nova manobra radical. 

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