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Estado de Minas DIáRIO DA QUARENTENA

Sísifo, o mais astuto entre os mortais, é relembrado pela 2ª vez

Professora Mariana Novaes cita ensaio do escritor Albert Camus, que utiliza-o como alegoria para o absurdo da condição humana


postado em 08/07/2020 04:00


Mariana Novaes
Professora

 Admiro aqueles que fazem dessa quarentena uma espécie de self hiperprodução. São inumeráveis os convites para lives, cursos gratuitos e dicas de séries que recebo, fora as ideias de atividades para se fazer com uma criança em casa. Eu, simplesmente, não consigo. Nesses tempos de pandemia, as horas passam muito rápido para mim. Algumas vezes até me queixo do cansaço, mas, na verdade, agradeço todos os dias pelo meu trabalho e pela minha filha, que me permitem não pensar no quão absurdo e desprovido de Deus é esse mundo em que a gente vive.

Lembro-me de Sísifo. Ele, um dos mais astutos mortais, conhecido na mitologia por ser um dos maiores ofensores dos deuses. Tamanha foi sua esperteza que conseguiu driblar por duas vezes Hades, deus da morte, e Tânato, deus dos mortos. Quando descoberto, como castigo foi condenado eternamente a rolar uma grande pedra com as mãos até o topo da montanha. Em seu ensaio filosófico, o Mito de Sísifo, o escritor Albert Camus utiliza-o como alegoria para o absurdo da condição humana.

Entretanto, se estamos vazios de qualquer explicação coerente para a pandemia e o Brasil, o meu mundo, ainda que me revolte com ele, está cheio de gente, essa repleta de amor, fraternidade, solidariedade. O amor encontro como mãe. E a fraternidade e a solidariedade, na família, nos amigos, no trabalho.

Amar não é fácil. Exige disposição e trabalho. Ser mãe, brinco, também é quase um trabalho de Sísifo. A gente começa o dia carregando a pedra, para a noite ela voltar a cair e, no dia seguinte, ter que carregá-la até o alto de novo. Porém, apesar da rotina cíclica e sem fim – cinco refeições diárias, lavar e estender roupa, varrer, passar pano – são muitos os momentos de alegria, doçura e leveza que a maternidade me proporciona. Se me levanto mais cedo do que gostaria com a máxima “mamãe, tá de dia”, também recebo beijos e uma palavra de amor. São eles, mais do que o café, a mesa posta, que me colocam de pé para mais um dia.

Na cozinha, experimento sabores novos e conto até com a ajuda da minha pequena assistente chef. Se a decoração da minha sala mudou e deu lugar a quase um quarto de brinquedos, são nessas brincadeiras de representar a vida que conheço mais minha filha. No sofá, além do cobertor que aquece, tem o seu abraço. A hora do sono, que se resumia a uma música de ninar e uma historinha, agora inclui as conversas, dosadas de sonhos – “quando o coronavírus acabar...” – e questionamentos. De tudo, ficará uma lembrança bonita de um tempo de cumplicidade, paciência e afeto entre nós duas.

São mais de 10 horas da noite e ainda é preciso ter ânimo para trabalhar. A coragem para o terceiro turno só ressurge graças à minha indignação. Se não me conformo, tenho que agir. Responder às mensagens de trabalho, de alunos, de um afeto querido, preparar uma aula, saber sobre e como ajudar alguém, mesmo que esse seja um desconhecido.

Camus fala que, apesar da condenação de Sísifo e de vivermos em um mundo cheio de injustiças, carente de qualquer explicação plausível, é preciso imaginar Sísifo feliz. Depois de cumprir sua árdua tarefa, ele suspira. Nesse suspiro está a sua felicidade. E, talvez, a nossa. No afeto, numa música, no sabor de uma comida, na poesia, na fraternidade que não derroca a esperança. Oswald de Andrade disse que a alegria é a prova dos noves. Já é madrugada. Durmo tranquila, afinal, o meu último respiro ainda é o “sonho dos justos”.

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