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Estado de Minas PANDEMIA

Afonso Borges: o isolamento social não começou agora

Casas com grades, edifícios onde vizinhos mal se falam e amizades que dificilmente ultrapassam as relações familiares são a marca de nossa sociedade, afirma o convidado do 'Diário da quarentena'


postado em 04/05/2020 04:00

Isolamento social ou férias forçadas?

Afonso Borges
produtor cultural
 
Não acredito em mudanças associadas a elevações espirituais. A mudança – de verdade – está ligada ao sofrimento. Mas o que mais tenho ouvido ultimamente é o discurso autoajuda-esotérico-espacial-astronômico sobre o impacto do isolamento social na vida das pessoas. Isso não existe.

O que, no fundo, todos ocultamos é que já vivemos, há muito tempo, uma espécie discricionária de isolamento social. Nossas casas têm grades, cacos de vidro nos muros, cercas elétricas e câmeras por toda parte; moramos anos e anos em edifícios sem conhecer nossos vizinhos; os círculos de amizade dificilmente ultrapassam as relações familiares e profissionais; nossas ações comunitárias e sociais se limitam a contribuições financeiras e inodoras, diferentemente do voluntariado legítimo, presente, de outros países. Ou seja, em tese, o confinamento espontâneo veio por causa de outro vírus: o medo.

Lembro-me de um poema do querido José Alexandre Marino falando das marquises das cidades, que abrigam, sob chuva intensa, pobres e ricos. Pois veio a chuva intensa e colocou todos sob a mesma marquise, fugindo da doença, um vírus arrasador, com o menor tamanho do universo. E vem em forma de defesa, de vingança – já está provado que a COVID-19 é uma reação da natureza ao desmatamento, à destruição desenfreada do planeta, numa espécie de guerra biológica natural.

E nos encontramos trancafiados em casa, onde sempre estivemos e nunca saímos, reclamando das intempéries da escravatura: fazer comida, limpar a casa, cuidar das crianças e, principalmente, da higiene – tarefas antes delegadas a nossas escravas modernas, as domésticas. Nunca é tarde lembrar: essa profissão foi regulamentada no Brasil há apenas cinco anos.

Em outros países e culturas, as tarefas domésticas não fazem parte da servidão. Principalmente naqueles que foram atingidos pelas guerras, a consciência do fazer individual se mistura ao coletivo. A nós, atravessados pela rotina desses cinquenta e poucos dias, o silêncio entre paredes oculta as mazelas da dificuldade do convívio interno. A tal “ecologia interior” sobre a qual Leonardo Boff, um de nossos mais agudos pensadores, escreveu. Se falta concentração, sobram conflitos entre os familiares; se falta colaboração, sobra egoísmo.

O confinamento só vai trazer crescimento, evolução e “mudança” – essa palavra em estado de dúvida – se houver harmonia, solidariedade, divisão de tarefas e muito, muito amor entre os familiares. Caso contrário, serão apenas férias forçadas – como muitos estão dizendo por aí. 

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