(none) || (none)
Publicidade

Estado de Minas

'Fomos contratados à força, sem cachê, para esta ficção científica'

No 'Diário da quarentena', a presidente do Sated-MG, Magdalena Rodrigues, relata o impasse imposto pelo coronavírus aos trabalhadores da arte


postado em 08/04/2020 04:00

Diário da quarentena  
Sonho e pesadelo

Magdalena Rodrigues
presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de MG


Período inusitado e por demais interessante essa tal de quarentena.

Sendo eu da classe de trabalhadores que ganham o seu pão fazendo arte, fui, como todos, avassaladoramente coberta pelo tsunami de consequências do cancelamento de todos os eventos, shows e produções, do fechamento de teatros e cinemas, da desmontagem de circos, do recolhimento de toda a produção de artesania, da inviabilização do trabalho artístico e técnico e do modo de fazer e acontecer de inúmeras manifestações e expressões artístico-culturais pelo mundo.

Esta inesperada interrupção, felizmente, não tem o poder de brecar a criatividade, mas modifica abruptamente os modos de oferecê-la ao público. Não há como se adaptar abruptamente.

O mundo das artes foi sacudido.

O mundo inteiro surpreendido. Qual será o valor da arte nesse pandemônio?

Nesses 42 anos me responsabilizando pelas consequências da minha escolha pela arte, encontrei de tudo: “Você não vai arrumar um emprego de gente?”. “Vai ficar nessa corda bamba a vida inteira?”. “Melhor acordar, porque na sua idade já não é fácil 
arranjar emprego!”.

No início, fazia faculdade de direito e trabalhava em uma empresa de caderneta de poupança, muito conhecida na época. Uma financeira.

Havia um professor muito culto, com o qual líamos livros importantes, discutíamos artigos publicados de cultura geral, estudávamos sobre arte. Barroco e Rococó eram temas presentes nas viagens ao interior de Minas para observação desses estilos

Nas leituras sugeridas pelo professor, que fazia questão de indicar obras polêmicas para nos aguçar a crítica, vivíamos períodos batizados com nomes dos autores. Por exemplo: no período “A vida imita a arte”, de Oscar Wilde, procurávamos mimetizar de alguma forma uma obra lida.

Foi assim que, como percebi (aos 12 anos) que não teria condições de seguir a minha escolha de ser bailarina, por falta de recursos financeiros da família, vaticinei que seria atriz vendo O homem que deve morrer, de Janete Clair. É engraçada e simplória essa historinha, eu sei, mas o que posso fazer? É verdade!

Pois bem, como não tinha a menor ideia de como ir em busca da minha certeza “A vida imita a arte” , aquela foi a minha chance. Procurei um curso de teatro e me senti em casa. E mais feliz fiquei na minha estreia como Jocasta em Édipo rei. Na faculdade, todos foram assistir, pois Sófocles oferecia matéria de estudo sobre a ética e a moral clássica, jusnaturalismo e relações de poder. Foi um lindo começo! Tornei-me a personagem da obra que li. Uma pessoa que trabalhava em banco (no meu caso, financeira), fazia teatro e estudava direito. Quanta inocência... O quadro mudaria bastante.

Depois, quando já ia lá pelos 12 anos de carreira artística, grávida pela segunda vez, surgiu a contingência de assumir a direção do sindicato da minha categoria. Meu professor tinha sido presidente de sindicato e incutido em minha maneira de encarar o mundo a defesa do trabalho e do trabalhador.

Nesse mister de defender direitos do trabalho artístico é que constato o quanto sociedade e governantes, numa atitude sub-reptícia, mascaram uma espécie de preconceito pelos artistas. Parecem se defender do fascínio, da coragem dessas criaturas que resolvem se prover materializando sua imaginação em espetáculos, cantando, dançando, compondo, tocando, pintando, esculpindo, atirando-se de alturas incríveis e, na maioria das vezes, 
sem salário mensal.

Meu Deus! Isso me faz arrepiar e chorar diante desta parada circunstancial que está estampando, com cores fortes, a imagem da nossa indigência. A calamidade tem esse dom. De governo em governo, desde sempre, não mudou a lógica perversa da política cultural, ou falta dela.

Neste filme de ficção científica para o qual não fizemos teste, mas fomos contratados à força e sem cachê, circo, teatro, dança, técnicos, músicos, cantores, todos aguardam ansiosos que a luz acenda e juntos possamos descobrir que foi um pesadelo.

O sonho se realizou. Temos valor e somos muito respeitados como trabalhadores. Somos devidamente contratados. Os governos descobriram que a arte salva, que a cultura é a alma do país, que faz a lapidação do ser, que ajuda a educar as crianças. Que todo mundo vai ao teatro. Que são todos loucos por dança. Frequentam os circos e morrem de rir com os palhaços. Deixam os celulares, lotam casas e ninguém precisa de uma cesta básica para viver...

''Esta parada circunstancial está estampando, com cores fortes, a imagem da nossa indigência''



*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)