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Estado de Minas DA ARQUIBANCADA

As chuteiras desamarradas de uma criança cruzeirense

Outro grande desafio era conseguir dinheiro para custear as constantes viagens para treinos e jogos em BH


10/10/2023 04:00
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Vinícius segura troféu
De volante a zagueiro, Vinícius brilha em peneirada há seis anos e agora começa a ser observado pelo técnico Zé Ricardo (foto: Álbum de família/divulgação)



Manhã de terça-feira, março de 2017. O clima abafado deixava ainda mais apreensivos pais e mães que se apertavam na arquibancada da velha Toca da Raposa. Estavam ali para acompanharem os filhos, cerca de 90 crianças que tentariam realizar o maior sonho de suas vidas: jogar no Cruzeiro. A peneirada para os nascidos entre 2005 e 2007 começaria dentre alguns minutos.

Mariana e Leandro estavam exaustos pela viagem de Carmópolis de Minas até Belo Horizonte. Atrasados, não tiveram tempo de dar café ao filho Vinícius e tampouco ajudá-lo a calçar as chuteiras, tarefa que o garotinho, de 11 anos, ainda não conseguia fazer sozinho.

Um apito forte cortou o silêncio. A ordem para as crianças caminharem até o gramado. Vinícius estava confiante, pois seus antigos treinadores – Arthur e Nelson – haviam sido muito bem recomendados a incentivarem o garoto a tentar. Mas, de repente, o pânico o paralisou. Ele estava longe dos pais e não sabia amarrar os cadarços das chuteiras.

Era o fim do sonho antes mesmo do tentar. Não teria a menor chance, tendo de jogar com o calçado desajustado. Vinícius abaixou-se, esticou as mãozinhas, arrancou um tufo de grama da Toca da Raposa e enfiou na chuteira. Ao menos uma lembrança da sua curtíssima passagem pelo time do coração ele levaria para mostrar aos coleguinhas.

O treino começou. E logo nos primeiros minutos, mesmo com a chuteira solta, Vinícius mostrou sua habilidade aos primeiros toques. Passou a receber outros passes e devolvê-los com perfeição, até que o famigerado apito soou novamente, paralisando a peleja. De longe, desolados, Mariana e Leandro assistiram o filho ser mandado para fora do campo.

Já juntavam as sacolas, em meio ao fim do sonho, quando o filho se aproximou e lhes estendeu um pedacinho de papel. Nele estavam os horários e dias de treinos. Vinícius foi o único aprovado naquela manhã. Estava no escrete do seu time do coração!

A comemoração foi com uma garrafa de refrigerante e um pacotinho de pão de queijo dividido entre os três. Os pais sabiam que ali começaria outro grande desafio: conseguir dinheiro para custear as constantes viagens de Vinícius para treinos e jogos em Belo Horizonte.

Mas o esforço do garotinho e a entrega total de seus pais provocaram uma verdadeira onda de solidariedade. As pessoas doavam o que podiam. Os caminhoneiros, amigos do avô, mandavam seus trocados. O leiteiro passou a não cobrar os dois litros diários da família. O taxista, que levava Vinícius para os treinos na Toca da Raposa, muitas vezes, pagou os pastéis nas paradas da estrada para não deixá-lo chegar com fome. Era uma cidade inteira sendo criança de novo.

Assim, à medida que a infância ia ficando para trás, Vinícius seguia superando as dificuldades. Deixou a posição de volante e passou a brilhar como zagueiro. Tornou-se titular e garoto de confiança dos companheiros e dos treinadores. Vieram títulos e medalhas de “melhor em campo”. A adolescência chegou com a convocação para a Seleção Brasileira Sub-15.

Anos depois, o telefone de Mariana e Leandro vibrou. Mensagem de Vinícius contando sobre uma nova convocação. O recém-chegado treinador Zé Ricardo escalou o zagueiro do Sub-17 para treinar pela primeira vez entre os profissionais. Os pais se abraçaram e deixaram as lágrimas de alegria se soltarem.

Meses depois, um contador de histórias cruzeirenses ligou para os pais do garoto com um pedido: “Me contem mais da história do Vinícius”?

Para atendê-lo, às vésperas do Dia das Crianças, ao remexer o baú de guardados, Mariana abriu uma surrada folha de caderno dobrada. Nela, por todas as linhas, letrinhas arredondadas de Vinícius. Era uma cartinha escrita por ele, no dia seguinte àquela manhã de março de 2017, quando treinou pela primeira vez no Cruzeiro com suas chuteiras desamarradas. Agradecia a todas as pessoas que lhe ajudaram a realizar o grande sonho de infância. Ao final, o escudo do Cruzeiro desenhado por ele e os últimos dizeres: “Com garra e muito amor ao meu time, obrigado, Senhor. #cruzeirosempre #timedopovo. Ass: Vinícius”.


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