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Estado de Minas GELEIA URBANA

Mais vale ser uma tartaruga que um siri (melhor ir devagar, do que de lado)

Em 50 anos, passarmos de uma legislação que incentivou o adensamento e reduziu o custo de infraestrutura por habitante, para uma legislação que promove o oposto


09/10/2023 06:00 - atualizado 09/10/2023 10:25
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Edifício São José, em BH
Edifício São José, em BH (foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press)

Meus avós paternos vieram da Polônia logo antes da guerra, e amavam o sol, o clima e, em especial, as frutas, coloridas, saborosas, abundantes. Foram parar em Ouro Preto mas, após 30 anos, deixam as ladeiras de Vila Rica para trás e se mudam para Belo Horizonte. O endereço escolhido foi a Avenida Afonso Pena, 1.456, pertinho do Conservatório. 

O Edifício São José foi o escolhido porque, além de ser o que cabia no bolso,  debruçava-se majestosamente sobre o Parque Municipal, com uma vista de tirar o fôlego. Moravam “de frente para o mar”.

A vida no Centro é propícia para uma vida a pé, sem carro, até porque todo o comércio e os serviços, o trabalho e a vida social aconteciam num raio de uns poucos quarteirões. Uma verdadeira "cidade de 15 ou 20 minutos".
 
Naquela época, o pessoal ainda fazia contas e conhecia o custo de se produzir um lote e a infraestrutura urbana necessária. Exatamente por isso, a legislação não apenas permitia como incentivava uma ocupação plena dos lotes, com a maior densidade possível.
 
E, assim, o Edifício São José ocupa todo o terreno, sem afastamento frontal, sem afastamentos laterais e iluminando um dos quartos, a cozinha e a área de serviço por um fosso de iluminação e ventilação. Nada demais, nada de mais, nada de menos.

Uns quartos eram, claro, melhores do que os outros, mas o apartamento funcionava muito bem, com boa iluminação, ventilação cruzada e uma área comum ínfima, reduzida ao mínimo necessário. O resultado é óbvio: custo de manutenção e taxas de condomínio reduzidas.

O lote tem pouco mais de 460 m², mas acomoda mais de 70 apartamentos (73, salvo engano) e 2 lojas no térreo. São 2 apartamentos olhando para o Parque, 2 para o prédio dos fundos e as 2 lojas alinhadas no passeio, mostrando que a fachada ativa não é um conceito novo (embora só tenha voltado à legislação urbanística em 2019, numa redação errada, que contraria a lógica do comércio e estraga os resultados esperados).
As lojas sempre funcionaram, porque alinhadas no passeio, na mesma configuração em que tiveram sucesso nos quatro cantos do globo, nos últimos 3.000 anos.

Não por acaso, os apartamentos da frente valem uns 50% mais do que os do fundo; afinal, uma vista que vai do Parque Municipal à Serra da Piedade é um privilégio pelo qual as pessoas acham que valha a pena pagar.

Não me lembro se, em algum momento, o Edifício São José teve estacionamento mas, se teve, meus avós nunca usaram (tampouco sentiram falta). Pela baixa vacância, parece não fazer falta até hoje. Achei 4 apartamentos à venda, e só.

Atualmente, estivesse o terreno do Edifício São José disponível, poderíamos fazer ali, quem sabe, 1 ou 2 lojas, afastadas 4 ou 5 metros do passeio por um gramado desinteressante (como desinteressante e pouco comerciais seriam as lojas), e mais uns 8 apartamentos, num prédio quase dez vezes menor, obrigatoriamente afastado dos vizinhos. As áreas comuns seriam, obrigatoriamente, bem maiores e a taxa de condomínio, por consequência, muito maior. Inviável, e gerando apartamentos cujo custo será 3 a 4 vezes maior do que os imóveis atualmente existentes no Edifício São José.

O resumo da ópera é o seguinte: trocaríamos 2 boas lojas por 2 lojas ruins, e teríamos 10% dos apartamentos, cada um deles com um custo 3 vezes maior e taxas de condomínio muito mais altas.

Trouxe o apartamento de meus avós e o Edifício São José, tanto pelas muitas e ótimas memórias, quanto para demonstrar o quão emblemático é, num espaço de 50 anos, passarmos de uma legislação que incentivou o adensamento e reduziu o custo de infraestrutura por habitante, para uma legislação que promove o exato oposto.
Importante lembrar que a guinada na legislação não vem das gestões atuais, mas lá de 1976, quando a gestão de Luiz Verano, prefeito indicado ("biônico"), promove uma mudança radical, abandona princípios consagrados até hoje nas cidades europeias e abraça conceitos moderninhos como coeficiente de aproveitamento, afastamento frontal, afastamentos laterais e altura máxima na divisa.

Parece grego, mas é aquele português tecnicista, feito por especialistas de biblioteca, pretensamente elegante e profundo, coisa restrita aos "iniciados". O problema é que eram teses ainda não testadas de forma ampla, e seus efeitos sobre a cidade só seriam sentidos de forma clara algumas décadas depois.

Atualmente, os reflexos desses efeitos estão presentes diariamente em nossa vida cotidiana, com os engarrafamentos sem fim, o encarecimento dos apartamentos, o aumento dos aluguéis e, na face mais nefasta, na expulsão dos moradores para outros municípios.

Fala-se muito em distribuição de renda e promoção de oportunidades, mas pouco sobre a responsabilidade da cidade na exclusão objetiva dos menos afortunados.

Quando alguém precisa morar a mais de 2 horas do seu emprego e da vida na cidade (com tudo que a cidade proporciona, como lazer, cultura, empregos, socialização, educação de melhor qualidade, inovação), a exclusão é real e, na maioria das vezes, insuperável e incorrigível.

Densidade é inclusão e igualdade de oportunidades, mas a cidade que pode promover, também pode excluir.

O que é difícil de compreender é: o adensamento em zonas com infraestrutura não custa para o poder público. Ao contrário, quanto mais apartamentos e negócios, maior a receita para o poder público. Quanto maior a densidade, quanto mais gente morando numa geografia menor, menos transporte público é necessário, menos carros nas ruas.
 
Vai entender.

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