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Estado de Minas FRED MELO PAIVA

Certeza de que vamos todos morrer disso

O Atlético não pratica exatamente o futebol, esporte em que homens disputam uma bola a fim de encaçapá-la em uma de rede. É uma encenação de Shakespeare


20/07/2021 23:18 - atualizado 21/07/2021 00:42

(foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)
(foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)
Sobrevivente da COVID, pela manhã liguei para o doutor Salvador e combinei um checkup geral. Agulhadas, sonografias, dedadas, mais um minuto naquela esteira e só não vesti o paletó de madeira porque, obviamente, ostentava o manto sagrado, meu amuleto da sorte. Que bobagem, bastava esperar pela noite que se anunciava. Por que eu não pensei nisso antes? Checkup de atleticano se faz na bacia das almas. É certo que morrerei disso.
 
O Atlético não pratica futebol. Nesse quesito é um tanto medíocre, apesar das contratações em série, dos craques no papel e do mecenato a que agradecemos. O que se pratica é um ritual no qual pisamos em brasa, caminhamos de joelhos na brita e, ao final, como se sabe, decolamos como uma fênix das alterosas, renascidos de um inferno que, no fundo, é o nosso paraíso.
 
Escrevo essas mal traçadas a toque de caixa, depois do jogo, sem ter visto os pênaltis que nos lavaram a alma. Estava eu na casa de um amigo invicto, com o qual jamais perdi um jogo do Atlético. O último pênalti que vi o Galo bater foi aquele que o Richarlyson errou com o Newell's, na Libertadores de 2013.
 
Depois, tratei de baixar a cabeça e rezar pela minha avó, pensar nas injustiças do passado e rogar a Deus, no caso de existir, para que se estabeleça uma política de reparação. Eu quero a minha cota.
 
Sento em um degrau qualquer e me refaço, menino, aboletado na calçada da rua do Ouro, com meus amigos todos atleticanos, ouvindo no rádio o Galo de Reinaldo. Embora ateu, apronto minhas mãos em posição de reza, quem sabe a convencer o homem lá em cima de uma possível conversão, puro teatro. O fato é que assim ganhei a Libertadores. E ontem mesmo, tirei o Boca, um fato grave que marcará para todo o sempre a nossa história. O Galo é sul-americano e, por conseguinte, mundial.
 
Tirar o Boca já é algo que se pode gritar aos quatro ventos, fica reconhecida em cartório uma inimizade insuperável que atravessará os tempos.
 
O Santos tirou o Boca e chegou à final. O Corinthians tirou o Boca e foi campeão. O Galo tirou o Boca duas vezes, a outra em 2010, coitado do Maradona rodando a camisa à Janaína Paschoal. O que nos aguarda, senão a glória de um Mundial?
 
O Atlético, como eu disse, não pratica exatamente o futebol, esse esporte em que homens disputam uma bola a fim de encaçapá-la em uma espécie de rede de pesca. Convenhamos, isso é uma besteira. O Atlético é uma encenação de Shakespeare, é algo muito maior e mais importante. Veja o Everson, salvo da condição de vilão por um detalhe que, embora tenha existido, ninguém viu.
 
Claro que, em se tratando de Atlético, o roteirista reservava a ele o epílogo monumental. Aquela batida no ângulo, que ainda não vi, é o final da novela, quase inverossímil, canastrona, ridícula, mas justa e irresistível.
 
Da cobertura do apartamento, covarde, não tive coragem de assistir ao desfecho, embora já soubesse seu fim. Mirei, lá de cima, algum morro. Busquei a luz da favela. E embora só tenha identificado uns prédios perdidos no belo horizonte da noite, vi a cidade explodir diante da obviedade de sempre: não é milagre, é Atlético Mineiro.
 
Certeza de que vamos todos morrer disso.

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