— Alô.
— Vô? Parabéns! Cê tá lembrando que é aniversário da Quarentena, né? Quatorze anos de Tranca Rua! Cinco mil, cento e dez dias! Não é pra qualquer um. Sobrevivemos!
— Parabéns pra você também. O tempo passa e a gente nem percebe. Apesar de que é só olhar no espelho. O meu cabelo tá só o Max Cavalera, e a barba já ultrapassou Karl Marx.
— Eita! Não diga isso... Você sabe que esse nome foi eliminado da Novilíngua e que todos os telefonemas são gravados pelo Partido Interno. Quer ser preso de novo pela Polícia do Pensamento? Deus também tem essa barba, é melhor falar de Deus.
— Todo mundo tem essa barba agora, até o Sampaoli. Barba, cabelo e bigode.
— Você vai participar do nosso Zoom? O Zeca Pagodinho tava muito caro, mas a Teresa Cristina vai dar uma palhinha. Eu queria o Snoop Doggy Dogg, ele curte uma Alcione e tal, mas a vovó horroriza com maconha.
— A live dos sertanejos tava em liquidação.
— É “sale” que fala, vô.
— Se for pra celebrar com o Gusttavo Lima eu nem abro minha Cerezer.
— Então você vai participar? É hoje às 9.
— Hoje eu não posso, tem jogo do Galo.
— Ah, vô... Como você consegue ver esse Galo? O Patric já tem quase 50 anos e trouxeram ele de volta... Desde que o cabelo do Sampaoli começou a crescer, parece que ele perdeu a cabeça.
— O Galo é o meu Rivotril e a minha cloroquina.
— Mas, vô, a família inteira vai participar.
— A minha família é o Galo. Meu pai que morreu infectado, até a minha mãe, eles são o preto e o branco daquela camisa. A Massa é a minha família, meu querido, sem querer desmerecer ninguém.
— A Massa não existe mais. Não há mais festa nem carnaval.
— A Massa era a coisa mais linda do mundo. Você era muito novo, você não viu, nunca vai entender. Quando tinha jogo do Galo, o povo saía de todas as partes vestindo o manto sagrado. E se aglomerava sem culpa, fora do estádio e, depois, na arquibancada. Nenhum jogador usava a camisa 12, porque a camisa 12 era a Massa ensandecida a expelir perdigotos no grito de Gaaaaaaloooo. Na hora do gol, desconhecidos se abraçavam e se beijavam.
— Credo, isso é nojento, só falta apertarem as mãos.
— Nojento foi ver o Inominável vestido com a camisa do Atlético. O genocida, o entusiasta da tortura, com a armadura do Rei... Ele não sabia sobre o punho cerrado? Ele não conhecia a nossa história?
— Não fala assim, estamos sendo gravados.
— E daí?
— Meu mundo é hoje, vô.
— Eu sou assim, quem quiser gostar de mim, eu sou assim. E assim morrerei um dia. Não levarei arrependimentos nem o peso da hipocrisia. Tenho pena daqueles que se agacham até o chão, enganando a si mesmo por dinheiro ou posição. Nunca tomei parte desse batalhão, pois sei que, além de flores, nada mais vai no caixão.
— Paulinho da Viola.
— Bingo!
— Você tem saudade, vô?
— Eu tenho pena. A gente tava começando a fazer o nosso estádio. Mas você sabe, o atleticano nasceu com o fiofó virado pro sol. Quando ele ficou pronto, ninguém podia ir.
— Mas não foi nessa época que introduziram o uso do escafandro para sair às ruas com segurança?
— Sim, atividades essenciais, como as academias de ginástica e as milícias, foram liberadas. Mas as multidões seguiram proibidas, e o futebol passou a ser disputado entre quatro paredes, um espetáculo exclusivo para a Teletela, que ao mesmo tempo nos entretém e, com suas câmeras, nos espiona.
— Mas ali também começou uma fase de ouro do Galo...
— Sim, o Sette Peles era amigo do Inominável. Uma afinidade que nasceu na caserna, trocaram camisas e patrocínios, cada qual com seu filhinho de papai. Quando veio a ditadura, o Atlético se tornou o time oficial, uma espécie de Flamengo da outra ditadura. Ganhamos tudo. Mas, como diz o outro, quem vive de título é cartório. O atleticano velho de guerra vive da sua dignidade.
— Você vai no Zoom, vô?
— Hoje eu não posso, tem jogo do Galo.