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Estado de Minas FRANCISCO MORALES

Glória e fracasso: a educação escolar está sendo chamada a se reinventar

A escola está obrigada, neste momento histórico, a educar para opções alternativas de vida e somar na construção de novos valores


postado em 18/05/2020 04:00 / atualizado em 18/05/2020 07:30

Pandemia do novo coronavírus esvaziou as escolas físicas, mas abriu novos caminhos na educação (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press 2/8/11)
Pandemia do novo coronavírus esvaziou as escolas físicas, mas abriu novos caminhos na educação (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press 2/8/11)

A quarentena está sendo, sem dúvida, um momento propício para intentar refundar valores e elaborar novos parâmetros, que ajudem a definir o que são “sucesso e fracasso” na vida. Algo assim como descolonizar o nosso intoxicado imaginário e construir caminhos, estimulando a capacidade de enxergar modelos alternativos de futuros possíveis, para cada um de nós e para toda a humanidade. Nesse sentido, o isolamento pode ser criativo e nos incentivar à procura de novas fontes de esperança e inspiração, centrando a atenção no diálogo interior. A solidão é a glória de estar só, pois “todo pensamento, falando estritamente, é elaborado em solidão e é um diálogo entre eu e eu mesmo” (Hanna Arendt).
 
Nesse sentido, a crise originada a partir da pandemia, tem devolvido para o centro da nossa vida, e espera-se que também para dentro das escolas, temas fundamentais  que nos preocupam e que eram ou tabus ou inconscientemente escamoteados e, portanto, banidos da abordagem nas rodas sociais, nas reflexões pessoais ou dentro do ambiente escolar.
 
Estou me referindo a temas tão essenciais como a procura pelo sucesso, o reconhecimento social, a realização pessoal e a felicidade. Contrapostos, geralmente, a outros como fracasso, solidão, não reconhecimento social e infelicidade. O cume dos poucos privilegiados apontando para a glória e o reconhecimento eterno; o destino da maioria, determinado para o fracasso e a morte inconsequente. Como se o destino final não fosse comum: “O horror da morte é a emoção, o sentimento ou a consciência da perda de sua individualidade” (Edgar Morin).
 
No interior mais profundo do Brasil, nesse brasil que o Brasil desconhece, o povo simples distingue entre “morte morrida” e “morte matada”. Faz-se assim, no imaginário popular, um corte necessário para a compreensão e explicação do que seja a morte “natural”, a que vem de Deus e do processo de finitude da vida, e aquela na qual o ser humano se arvora em deus, para poder dispor da vida e da morte dos outros ao seu bem entender. Bela e trágica, ao mesmo tempo, a narra assim o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999): “E se somos Severinos iguais em tudo e na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia, de fraqueza e de doença/ é que a morte severina ataca a gente em qualquer idade e até a gente não nascida” (em Morte e Vida Severina).
 
Empurrada pela agenda do modelo neoliberal, a procura desenfreada por “felicidade”, “dignidade” e “amortalidade”, a escola também fixou seu fazer educacional nesse modelo maluco e estressante, perdendo de vista os fundamentos do ser humano e seu desenvolvimento individual e social. Obrigada a focar  o “sucesso” dos estudantes e sua realização pessoal e profissional, a escola cavalgou no lombo de alguns conceitos que se tornaram mágicos: “ser vencedor”, “para sempre”, “ter a vida resolvida”, “ser alguém” e assim trabalhou no imaginário de crianças e adolescentes ideais e atitudes que ajudaram a consolidar esses valores como os únicos autênticos.
 
Preparamos os nossos estudantes para a glória e a realização pessoal, passando, se necessário for, em cima de tudo e de todos. A glória é se “formar bem”, conseguir um bom emprego e ganhar dinheiro para poder encarar o resto da vida tranquilo, com a certeza de que isso lhe consolidará como um vencedor e durará “para sempre”. Assim, brincamos de imortalidade.
 
A COVID 19 nos desvendou uma realidade cruel e insofismável, mostrando que tudo pode se desmanchar no ar, que tudo é efêmero, que a finitude é uma realidade presente nas nossas vidas e que a morte, como horizonte real, nos invade de forma avassaladora. Em poucos meses, os fundamentos do modelo de sociedade dominante ruíram como um castelo de cartas e, de repente, nos sentimos conscientes e ameaçados. Será que, finalmente, assumiremos que todos somos humanos, todos mortais, todos finitos, todos com a grandeza da glória e do fracasso incorporados na nossa vida? Reconhecer isso será o nosso grande ganho, como pessoas e como humanidade.
 
A escola, pilhada nesse sucateamento pessoal e comunitário, não pode e não deve reproduzir, pura e simplesmente, a dinâmica social dominante. Muito pelo contrário, ela está obrigada, neste momento histórico, a educar para opções alternativas de vida e somar na construção de novos valores, que ajudem nossos estudantes a entender que suas vidas devem estar a serviço da vida, de forma colaborativa e complementar. A escola deverá aprender a conjugar os verbos incluir, cuidar, educar e humanizar. Glória ou fracasso de todos!
 
A pandemia, que teve força suficiente para colapsar hospitais, fechar fábricas e comércios e trancar as portas de escolas e universidades, não conseguiu acabar com a educação. Muito pelo contrário, a potencializou: multiplicaram-se o número de salas de aula, de professores, de metodologias e de trocas, abrindo novos e impensados caminhos. Isso nos mostra que a educação é maior, muito maior, do que as escolas e os sistemas escolares. Surgirá um “novo modelo educativo”? Tomara que sim, pois, parafraseando Walter Benjamim, “que após uma crise, as coisas continuem como antes, eis a catástrofe”.


Francisco Morales Cano foi diretor geral do Colégio Santo Agostinho BH durante 20 anos. Atualmente é sócio diretor da DOXA Educacional

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