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Estado de Minas

Carrefour racista? Que isso, nós temos até funcionários negros!

Seguimos sendo platéia desse show, que está muito longe de ter um final de contos de fadas, naqueles moldes de 'e foram felizes para sempre'


13/04/2023 10:00 - atualizado 14/04/2023 11:55

Captura de tela de um slide de treinamento antirracista do Carrefour. Há uma mulher preta de cabelos crespos e grisalhos falando em língua de sinais no canto inferior direito da imagem.
(foto: Reprodução)

 
Temos assistido, até agora, a um verdadeiro show de horror no que se trata da gestão de crise institucional adotada pelo grupo empresarial Carrefour nos recorrentes casos de racismo que são sediados em suas unidades. Seguimos sendo platéia desse show, que está muito longe de ter um final de contos de fadas, naqueles moldes de “e foram felizes para sempre”.

Digo contos de fada porque é preciso ser mais inocente do que uma criança para não entender a conotação racista da nota divulgada ontem pelo grupo Carrefour em rede nacional no horário nobre na TV. Além de nos matar e nos expor a situações constrangedoras de discriminação em suas unidades, subestimam de forma descarada a nossa inteligência.

Porque só quem subestima a inteligência do telespectador usaria a frase “metade dos nossos 150 mil colaboradores são negros” para argumentar que é antirracista. Me lembra aquelas pessoas que, quando são surpreendidas cometendo um ato de racismo, respondem: “Que isso? Eu tenho até um amigo negro”. 

Será mesmo que empregar pessoas negras faz deles menos racistas, principalmente numa empresa em que a maioria dos cargos, mesmo sendo dignos e fundamentais para o funcionamento da sociedade, são remunerados com sub-salários? Não precisa ser nenhum especialista em recursos humanos para fazer uma análise densa ao adentrar qualquer supermercado em que os serviços e tarefas executadas pelos tais colaboradores citados são pesadas e insalubres.

Tarefas de serviços gerais, repositores de hortifruti, laticínios, açougues que exigem uma força física que coloca o corpo em constantes desgastes, ocasionando diversas patologias. Vivemos em um mundo em que a tecnologia é muito avançada, não é mesmo? E me conta, quantas vezes mesmo você já viu um carrinho elétrico carregando as caixas pesadas pelos corredores para que os repositores apenas repusessem a mercadoria nas prateleiras? Pois é, além de repositores, são carregadores exercendo uma função que lesiona a coluna, o joelho e outros membros do corpo. 

Não, eu não me esqueci da parcela de colaboradoras que trabalham ali, sentadinhas no caixa, enquanto uma fila enorme de pessoas aguarda para fazer o pagamento de suas compras. Aquelas que têm, cada uma, uma câmera direcionada para seu posto, monitorando o lucro. Aquelas que colocam a cara à tapa, que são tratadas de forma hostil por quem está cansado de esperar na fila, porque a conta deu muito mais alta do que se esperava ou porque há uma divergência no preço anunciado com o registrado na hora de pagar.
 
As mesmas que, caso o supermercado seja assaltado, estão com o dinheiro e, portanto, estarão extremamente vulneráveis e, muito possivelmente, serão as vítimas fatais se o assalto culminar em um latrocínio, ou seja, roubo seguido de morte. 

Esses corpos negros que o Carrefour chama de colaboradores são colocados nessas funções extremamente bélicas que, além de trabalhadores, são literalmente alvos em uma sociedade capitalista e violenta como a nossa. Não se engane: o segurança negro não é posicionado somente para defender o patrimônio ou só para matar, como foi o caso do João Alberto Freitas no estacionamento. Os seguranças negros são selecionados, também, para morrer em um possível caso de assalto a mão armada. São esses profissionais que entram em luta corporal com uma pessoa que furtou uma manteiga. Imagina correr o risco de ser morto para evitar o furto de uma manteiga? E ai dele se não abordar o meliante, é justa causa na certa. 

Há uma lógica racista no funcionamento da engrenagem capitalista. Querer subverter isso em um discurso de promoção da igualdade racial tendo consciência de que o mísero salário pago a esses colaboradores mal fomentam a sua sobrevivência é de uma crueldade tamanha, que eu confesso que não estou e nunca estarei capacitada para mensurar. É nítido que essa nota não foi revisada e aprovada por um profissional negro, e que foi elaborada por uma pessoa branca para “apagar o incêndio” provocado pelo ato de repúdio ao racismo sentido pela professora Isabel Oliveira no bairro Guaíra, em Curitiba, e pela denúncia do advogado Vinícios de Paula em Alphaville, na região de Barueri, na Grande São Paulo. É óbvio que a palavra final da nota foi de uma pessoa branca, porque  eles não sabem, mas pessoas negras podem identificar diversos problemas que são invisíveis aos olhos das brancas.

Em relação à denúncia de racismo do Vinícius, em que ele teve o atendimento negado por uma das profissionais do caixa, a solução encontrada pelo Carrefour foi fazer o desligamento da funcionária. Isso mesmo: eles demitiram a funcionária, o que nitidamente contradiz com a eficiência do curso antirracista contratado e tão publicizado pelo supermercado para capacitar seus funcionários. Se esse projeto de capacitação junto à faculdade Zumbi dos Palmares realmente fosse levado a sério pela empresa, eles não teriam demitido a funcionária, e, sim, dariam a ela a oportunidade de fazer o curso, não é mesmo?

Será que não está na hora de aprendermos alguma coisa com o Carrefour? Estou certa de que já passou da hora de nós, consumidores negros – ou não –, “demitirmos” esse grupo empresarial que compra título de antirracista contratando e fazendo acordo com alguns negros de destaque para fazê-los de escudo, invalidando e minimizando as denúncias de racismo presentes e futuras. Já deu para perceber que colocar o apresentador Manoel Soares em suas publicidades não minimizou as práticas racistas dessa instituição, mas trouxe o argumento subliminar recorrente e enfadonho de que: “não somos racistas temos até um garoto propaganda negro”.

Engana-se muito quem acha que empresas que sediam o racismo de forma recorrente, como é o caso do Grupo Carrefour, têm mais a agregar ao nosso país do que os danos que causam. A manutenção do lucro e do privilégio é feita de uma maneira que desafia leituras das relações raciais feitas de forma simplistas. Quem nos mata, nos humilha, nos discrimina motivado pelo racismo, não deveria ter a oportunidade de desenvolver alegações em um veículo tão poderoso, como é a televisão, e que acabam se tornando justificativas para continuarem impunes, sem responderem criminalmente pelo assassinato e pelos diversos crimes de racismo. Se o Carrefour fechar as portas hoje, outras redes se ampliam e absorvem as mãos de obra qualificadas que, hoje, possuem vínculo empregatício com o Carrefour. Essas mesmas redes vão ficar alertas quanto ao racismo, porque saberão que também correm o risco de serem “demitidas” se forem reincidentes no crime de racismo.

A pergunta que eu deixo é: Porque o Carrefour pode demitir a funcionária racista e nós temos que dar uma nova chance oferencendo curso antirracista para eles? A maior armadilha do opressor é manter o oprimido ocupado ensinando a ele o que ele já sabe e não quer colocar em prática. 

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