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Estado de Minas DIREITO SIMPLES ASSIM

Camarão, torta holandesa, vinho, presunto de parma e o Exército no RJ

Relatório do Tribunal de Contas da União fundamentou operação da Polícia Federal e faz suscitar a situação jurídica do Exército brasileiro


13/09/2023 06:00 - atualizado 13/09/2023 14:27
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vários bonecos de soldadinhos verdes enfileirados, com chapéus, mochilas e armas em punho.
O Exército brasileiro precisa ser repensado urgentemente. (foto: REWAT-WANNASUK)

 

Como é de conhecimento geral, o ano de 2018 foi marcado pela intervenção federal no Rio de Janeiro, com a presença do Exército chegando em tanques e blindados para assumir a segurança pública do Estado. Há poucos dias, por sua vez, a Polícia Federal, com base em um relatório emitido pelo TCU, cumpriu diversos mandados para apurar abusos, desvios de finalidade e superfaturamento dos gastos com a intervenção.

 

Dentre os itens apontados, verificou-se diversas compras de itens de luxo, como vinhos, presunto de parma, camarão, bacalhau, torta holandesa, etc. Além disso, foi observado o uso da verba extraordinária da intervenção para fazer reformas em unidades do Exército sediadas no RJ, ou seja, sem qualquer conexão com a intervenção.

 

Parêntesis 1: Presunto de Parma, ou mais tecnicamente, Prosciutto di Parma, é um presunto produzido por um processo de cura especial, realizada exclusivamente dentro dos limites geográficos da região de Parma (Itália) e nos termos do Consorzio del Prosciutto di Parma. São produzidos exclusivamente com suínos das raças Large White, Landrace e Duroc, alimentados com cereais e soro de leite provenientes da produção de queijo Parmigiano Reggiano.

 

Eu não sei você, mas eu nunca tinha ouvido falar desse negócio. Então achei importante pesquisar e explicar.

 

Voltando: Muito mais do que os fatos em si, o relatório do TCU e a operação da PF levam a uma reflexão importante e laconicamente negligenciada no Brasil. E como você já deve saber, o que está em todos os portais não me interessa, porque você já sabe mesmo. O bom é pensar no que está por trás de tudo isso e que quase ninguém vê.

 

E o que está por trás de tudo isso é a autonomia financeira que o Exército criou para si mesmo e foi acolhido ao longo dos anos. Para entender essa autonomia é preciso entender como se estrutura a Administração Pública brasileira.

 

Parêntesis 2: eu vou tentar simplificar para o que me interessa e, com isso, obviamente ficará lacunoso. Entretanto, é impossível tratar com completude, dado o tamanho da matéria e a infinidade de peculiaridades. Aos puritanos de plantão, já fica aí a minha justificativa.

 

Voltando: A Administração Pública se manifesta no mundo do direito por meio de pessoas jurídicas. Pessoa jurídica é uma espécie do gênero pessoa (que pode ser natural, como eu e você, ou jurídica, como as empresas, uma associação ou o Município que você mora). Na estrutura do Estado brasileiro, são pessoas jurídicas a União, os Estados Federados e os Municípios.

 

Essas pessoas jurídicas podem ser descentralizadas em outras pessoas jurídicas com finalidades específicas, como as autarquias, as fundações, as empresas públicas e as sociedades de economia mista (cada uma com uma função). Então a União é uma pessoa jurídica, o Banco Central do Brasil é uma autarquia (outra pessoa jurídica), a Fundação Nacional dos Povos Indígenas é uma fundação (outra pessoa jurídica), o Serviço Federal de Processamento de Dados é uma empresa pública (outra pessoa jurídica) e o Banco do Brasil é uma sociedade de economia mista. Cada um desses tem um CNPJ diferente e tem o que se denomina personalidade jurídica própria, a par de, cada um no seu quadrado, fazer parte da Administração Pública Federal.

 

Dentro de cada pessoa jurídica dessa, há o que se chama de desconcentração administrativa, que nada mais é do que a divisão dessa pessoa jurídica em órgãos públicos, de modo a viabilizar que o serviço público seja executado com especialidade. É a lógica clássica da divisão do trabalho que se utiliza em qualquer lugar do mundo (eu acho, pelo menos).

 

Esses órgãos públicos não têm CNPJ, pois são parte da pessoa jurídica a que pertencem. Então, se você chegar ao Departamento de Fiscalização do Banco Central do Brasil, estará diante de um órgão de uma autarquia (o Bacen). Qualquer coisa que acontecer ali, será de responsabilidade do Bacen e não daquele órgão específico.

 

Se o departamento em questão aplicar uma multa (por exemplo), o questionamento judicial da multa (também por exemplo) não será contra o servidor ou contra o departamento, mas contra o Bacen. Da mesma forma, se a multa não for paga, a cobrança será feita pelo Bacen. Isso porque é a autarquia que é pessoa (jurídica) e, por isso, somente ela tem personalidade jurídica.

 

Parêntesis 3: personalidade jurídica é a capacidade de adquirir direitos e obrigações. Logo, se o seu gato matar o passarinho do vizinho (já aconteceu comigo), quem paga o prejuízo é você, já que o gato não tem personalidade (ainda que esta afirmação valha exclusivamente para o mundo do direito e não para a definição de alguns espaços na sua casa).

 

Voltando: e o que tudo isso que eu falei tem de relação com o Exército e com os fatos ora em evidência? Tem muito, porque o Exército escapa de todas essas regras sem um fundamento constitucional ou legal expresso. 

 

O Exército é órgão da União. E você já viu que isso significa que ele é uma desconcentração das atividades da pessoa jurídica e, por isso, não tem personalidade jurídica própria. Se não tem, logo, não tem autonomia e capacidade de assumir direitos e obrigações, certo? Errado!

 

Contrariando toda a lógica da regra apresentada acima, o Exército é um órgão que age como uma pessoa jurídica autônoma, assumindo direitos e obrigações, contratando e distratando, comprando e alienando, enfim, fazendo tudo que uma pessoa jurídica pode fazer, mas sem o ser. E mais, sem qualquer interferência da pessoa jurídica a que está vinculado (a União).

 

O que surpreende é que essa estrutura tem previsão legal (art. 12, § 3º, da Lei Complementar n. 97/99) e é justificada nos livros de Direito com o fundamento da importância do órgão para a História do país e sua posição de relevo que lhe garante autonomia. Se você visitar a página institucional do Ministério da Defesa, vai ler que a defesa tem estrutura organizacional “peculiar”, de modo que os “Comandos das Forças Singulares dispõem de estruturas próprias, de efetivos de pessoal militar e civil, fixados em lei, e de autonomia para fazer a gestão, de forma individualizada, dos recursos orçamentários que lhes forem destinados no orçamento do Ministério da Defesa”.

 

Ainda que se reconheça raciocínio contrário, mas se a métrica for a importância para a História e sua posição de relevo, também era preciso conceder autonomia para o Ministério das Relações Exteriores (só para dar um exemplo) que já salvou o Brasil de poucas e boas ao longo de toda a nossa História (inclusive recente). É só um exemplo, mas contundente o suficiente para entender que está muito na hora de revisar essa ideia um tanto quanto esquisita de conceder patentes jurídicas (com todo o trocadilho possível) para órgãos sem qualquer justificativa de direito.

 

Essa ausência de hierarquia (tão louvada pelas forças militares) leva a resultados absurdos como esses que vimos agora no noticiário; leva aos milhões gastos com procedimentos estéticos, como vimos em passado recente; e a tantos outros que aparecem quando alguém, acidentalmente, chama a atenção para o fato. Sabe-se lá o que mais não ocorreu e não sabemos, dado que a administração militar se multiplica em milhares e que fazem o que querem, sem relação de subordinação.

 

Sim... não são três unidades autônomas, mas milhares. E todas elas se valem desta lógica da sua importância para tentar se desvencilhar do controle a que está submetida toda Administração Pública! Quer um exemplo? Olha uma das justificativa apresentadas pelo 5º Batalhão de Engenharia e Construção do Exército (sediado em Rondônia) para se livrar de graves irregularidades encontradas em contratos pelo TCU:

 

“o 5º BEC é parte integrante da história de Rondônia e do pioneirismo do desenvolvimento na Amazônia, onde foi implantado mais de 1600 km de rodovias federais. Dentre suas missões regionais tem-se: construir, reparar e conservar vias de transporte e instalações diversas, cooperando com órgãos públicos para o equipamento do território, em particular, da região onde está desdobrada no Estado de Rondônia” (TCU, ACÓRDÃO 2111/2016 – PLENÁRIO, Rel. Augusto Nardes, julgado em 18/08/2016).

 

Se você também ficou com aquela sensação de “tela azul”, estamos do mesmo lado. Até porque a importância de um órgão (e mesmo de uma pessoa jurídica) para o país ou uma região jamais foi baliza para nada. Logo, o problema é grave e foi criado institucionalmente, o que é o passo mais certo para dar errado, agora sem trocadilho.

 

A importância das forças armadas não pode lhes retirar ou flexibilizar as regras de controle, que devem ser superiores e externas (especialmente civis). Na realidade, quanto maior a importância, maior e mais rigorosa deve ser a vigilância (exatamente por serem importantes). Situações como as verificadas atualmente no caso da intervenção no RJ só mostram que a execução da atividade fim deve caber ao órgão especializado, mas o suprimento, a organização da estrutura, finanças, logística e tudo o mais que se refira a viabilizar a existência do órgão, deve ser atribuição de órgãos superiores e diversos.

 

É assim com “todo mundo” e simplesmente não faz sentido que seja diferente com as Forças Armadas.

 

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