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Estado de Minas DIREITO SIMPLES ASSIM

O julgamento da Boate Kiss e o direito pela vontade

A repercussão do julgamento do STJ sobre o caso da Boate Kiss mostra como estamos julgando mal


06/09/2023 06:00 - atualizado 06/09/2023 08:25
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Homenagens às vítimas do incêndio na porta da boate
Homenagens às vítimas do incêndio na porta da boate (foto: wikimedia commons)

 

Esta semana o Superior Tribunal de Justiça julgou um recurso que tinha a intenção de reformar a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que havia anulado o júri do caso da Boate Kiss. A intenção do recurso era deixar o caso julgado como estabelecido na sentença, com a condenação dos acusados.

 

As manifestações que vi sobre este caso foram mais um sintoma de que estamos com severos problemas e que precisamos refletir sobre a nossa forma de estabelecer julgamentos. Para isso, como sempre, é preciso dar muitos passos para trás para conseguir dar alguns passos para frente.

 

 

O direito sempre existiu. Não com a forma que nós o conhecemos hoje, mas sempre existiu. Na realidade, a estrutura denominada “Estado” que nós conhecemos hoje como o “fabricante de leis” que materializam o direito é algo substancialmente recente na História humana e, por isso, definitivamente não pode ser tido como algo que “é”, mas que “está”.

 

Esta diferença é importante para que possamos entender que o direito, assim como quase tudo, é fruto de uma construção tipicamente humana e a forma como ele “está” tem uma razão de ser. Conhecer estas razões é fundamental para analisar um fato concreto, para defender um ponto de vista e principalmente para criticar e propor mudanças.

 

A primeira coisa que acredito ser importante destacar é que direito é força e, por vezes, força bruta. Na maior parte da História, a produção das regras de conduta era monopolizada por quem detinha força bruta capaz de subjugar os demais.

 

Parêntesis 1: é a cena icônica do filme “2001: uma odisseia no espaço” (Stanley Kubrik) em que o primata pega um pedaço de osso e o usa como ferramenta para aumentar a sua força bruta. Neste momento, ele se sobrepõe aos demais e, por isso, exerce poder. Acrescentaria eu que, ao exercer o poder, dita as regras.

 

Voltando: Podemos julgar de forma até intuitiva hoje que essa forma de poder não é muito interessante, mas, acredite, é a que por mais tempo vigorou e até hoje ainda tem ampla aplicabilidade em inúmeros territórios do mundo.

 

Entretanto, me interessa aqui retornar aos primórdios do que chamamos hoje de direito (ocidental, obviamente) e como isso nos interessa hoje. O medievo (onde ainda não existia Estado) é um ponto de partida interessante, pois nos dá conta daquilo que quero discutir.

 

Isto porque no medievo o ser humano produziu o que Eugênio Raúl Zaffaroni chamou de primeiro Código de Processo Penal da História, denominado Malleus Maleficarum, ou “O martelo das feiticeiras”. Este livro era um manual destinado aos membros do Tribunal do Santo Ofício, mais conhecido como Inquisição, de responsabilidade da Igreja Católica.

 

Parêntesis 2: a palavra "tribunal" aqui não é aleatória, pois muito do que nós temos como direito hoje é fruto direto da produção de conhecimento e dos fazeres da Igreja Católica. Para tanto, te convido a abrir uma bíblia católica e qualquer código de leis brasileiro e você perceberá que a estrutura é rigorosamente a mesma – ainda que com milênios de distância de um para o outro. Não é coincidência.

 

Voltando: O Tribunal do Santo Ofício era o responsável pela “caça às bruxas”, purgando o mundo dos pecados. As bruxas, como você já deve saber, eram as mulheres que “faziam coisas....”, coisas essas do tipo fazer chá para curar qualquer doença, para abortar, para dormir ou qualquer outra propriedade que um adequado conhecimento de flora permite. Em suma, qualquer coisa que não se entendia bem podia ser bruxaria.

 

Servia, vez em sempre, para eliminar inimigos e, principalmente, pessoas indesejadas, como aquelas que eventualmente se recusassem a proclamar o santo poder da igreja; que se recusassem a se submeter aos seus dogmas; que não fossem obedientes aos seus pais ou maridos; ou que tivessem comportamento inadequado ao que se esperava uma “mulher honesta” (e acredite, esta expressão era vigente na legislação brasileira até 2005).

 

Parêntesis 3: é neste contexto que nasce a figura do "Advogado do Diabo", que nada mais era do que a pessoa incumbida de investigar os pecados da pessoa acusada para, em nome de Satanás, demonstrar que ela era merecedora do mármore do inferno e da danação eterna. Eu não sei se você percebeu, mas quem representa Satanás na terra é o Ministério Público e não a advocacia, pois a ele é que se incumbe esse papel de acusar quem quer que seja e não à Advocacia. Entretanto, como o nome da época era “Advogado do Diabo” esse abacaxi caiu todo no colo errado. Veja que até a própria bíblia cristã se refere a Jesus como Advogado, o que dá aquela nobreza para a profissão. Por outro lado, se Jesus foi punido sem ser culpado, quem é a advocacia na “fila do pão”...

 

Voltando: essa história toda é importante porque eu preciso destacar para você o critério para definir “a prova” de que alguém era culpado (de bruxaria) ou inocente. E a prova por muito tempo foi feita pelas famosas ordálias. 

 

Ordálias nada mais representavam do que um método, muito simples por sinal. De acordo com o Malleus Maleficarum, a principal fonte de prova era a confissão e, para isso, se estabelecia uma lista portentosa de mecanismos de tortura capazes de extrair a confissão do acusado. Vale a pena observar o funcionamento da “roda”, da “dama de ferro” e dos instrumentos cortantes e perfurantes.

 

Extraída a confissão, estava tudo resolvido. Réu confesso tira o peso da decisão do julgador, já que o acusado confessou mesmo. O pau de arara está aí pertinho da gente para mostrar a eficácia.

 

E se mesmo assim o réu não confessar? Bom, aí entram os mecanismos de prova (as ordálias). A primeira premissa é: em pleno medievo, você teria coragem de externar a existência da possibilidade de Deus abandonar algum de seus filhos injustamente? Acredito que não.

 

Pois bem, se Deus não abandona seus filhos e alguém está sendo acusado de bruxaria (que é negar a Deus), basta que se amarre o acusado a uma pedra de 200kg e jogue no rio. É possível também jogar o acusado em um caldeirão em brasas ou então ateá-lo em uma fogueira mesmo. Se for inocente, Deus não deixará que um inocente sucumba injustamente e o acusado flutuará na água ou não queimará no fogo.

 

E alguém já escapou? Claro, a exceção serve para confirmar a regra e um lacinho frouxo (apesar de bem adornado) ajuda bastante. Não se engane, fake news existe há muito tempo e sempre beneficiou a quem delas tem ciência. E funcionou por muito tempo.

 

Olhando para isso, é impossível não se barbarizar e perceber o quão absurdo é todo esse cenário e a imensidão de abusos de poder que este sistema legitimava. Obviamente que muitas pessoas também viram e foi exatamente para se contrapor (também) a esta loucura que surge o que denominamos de iluminismo.

 

Ao contrário do que se tenta pintar nos filmes, o medievo não era um período sombrio, sem cores e marcado por trevas. Muito menos o iluminismo foi marcado pela luz e pela liberdade. A iluminação aqui é das ideias e não do mundo, que continuou por muito tempo muito parecido esteticamente.

 

A iluminação é da racionalidade sobre o dogma, das leis universais da física e da matemática sobre a vontade arbitrariamente posta por deuses que, em realidade, eram apenas homens que invocavam para si a qualidade de representantes de Deus.

 

Neste ambiente, o Tribunal do Santo Ofício tem que ceder lugar à razão e ao direito, que não pode mais ser a vontade de Deus (ou o que se imagina ser ela escrita na bíblia), mas a vontade das pessoas racionalmente estabelecida.

 

Substituímos a religião pela lei para substituir a mística (que é inauditável) pela razão (que pode ser debatida, questionada e revista sempre que necessário). Aqueles que pensam o direito queriam ser o mais analíticos quanto possível, sem sequer perceber que essa obsessão teria um preço alto.

 

Conforme Paolo Grossi, no seu “Mitologias jurídicas da modernidade”, substituímos o culto a Deus pelo culto à lei, como se ela expressasse genuinamente (e racionalmente) aquilo que passamos a denominar de direito. Não se enganem, não estamos muito longe. Isso tudo aconteceu lá entre 1.800 a 1.900.

 

O resultado disso foi a guerra e o seu ápice com o nazismo, largamente legitimado pela lei, pelo direito e pela racionalidade. Em nome da lei (e do direito), julgou-se razoável aniquilar seres humanos indiscriminadamente, subjugar povos e estabelecer castas sociais com mais ou menos direitos. 

 

A racionalidade, levada ao extremo, levou à irracionalidade, dado que o papel (e, portanto, a lei) tudo aceita – até que negros são coisa, mulheres são incapazes e pobres não podem votar. Essa barbárie, com seu ponto extremo na Segunda Guerra, termina com... um julgamento.

 

Sim, o Tribunal de Nuremberg foi o símbolo da expressão que se teria adiante. Até então, os perdedores da guerra eram mortos ou escravizados. De regra, eram mortos, como forma até de inviabilizar o inimigo (pelo menos para um futuro próximo e talvez distante).

 

Entretanto, Nuremberg foi, ao fim, uma peça de propaganda de um novo triunfo da racionalidade. Os aliados não iam simplesmente matar os nazistas. Iam julgá-los, como a razão manda, como a lei determina e como a modernidade instaurada diz que deve ser. 

 

A condenação dada aos réus no julgamento foi a morte, pela forca (e não por fuzilamento como se deve eliminar, respeitosamente, um militar). Alguém pode pensar: se iam matar todo mundo de qualquer jeito, para que então todo o julgamento? Era a forma de dizer que os aliados ("mundo civilizado") eram melhores do que o eixo. Não deixa de ser uma forma de subjugar, mas também é uma forma de dizer que é preciso haver alguma racionalidade.

 

Parêntesis 4: exatamente por isso surge a regra da proibição ao tribunal de exceção, que é a proibição de tribunal instituído para o julgamento de fato determinado que já aconteceu. A História mostra que tribunais de exceção nascem com a sentença condenatória já escrita e o julgamento passa a ser uma mera formalidade para dar ares de racionalidade a uma decisão previamente tomada.

 

Voltando: o legado de todo esse cenário macabro da História é a consciência de que a lei não se confunde necessariamente com o direito e que é preciso retomar conceitos como justiça e ética na interpretação e aplicação das leis. Todo mundo já viu na internet a famosa frase de Matin Luther King sobre o dever moral de desobedecer a uma lei injusta. O contexto é exatamente esse (ainda que ele se referia a outra coisa, mas obviamente não tirou isso da cartola).

 

O problema é “dosagem”. Como quase tudo na vida, sendo uma das exceções o consumo de café, o equilíbrio é mais vantajoso e mais prudente que o excesso. Não se pode aplicar cegamente a lei, mas também não se pode afastar dela demais, dado que a noção de justiça (só para começar) é algo substancialmente subjetivo.

 

E se olharmos hoje ao redor, podemos perceber um inflame de interpretações do direito que praticamente retornam à noção jurídica medieval, no sentido de que a concepção de justo, como que extraída de ordálias contemporâneas, é a baliza para decisões graves, como a responsabilidade ou não de alguém. Li, pouco antes do julgamento, um influente jornalista afirmar que se esperava que os Ministros do STJ tivessem “sensibilidade” para julgar o caso da Boate Kiss para, a partir desta sensibilidade, reformar a decisão para condenar os acusados.

 

Vejo, diariamente, pessoas que se dizem defensoras de minorias clamarem por julgamentos e execuções sumárias de penas contra acusados, como se esse senso de “justiça” não lhes atingisse diretamente pelo senso de justiça alheio. Percebo tendências voluntaristas graves, como pessoas (e até profissionais com formação jurídica) defenderem a existência de um direito de se julgar sem uma forma, sem uma racionalidade, mas pela passionalidade de uma “necessária resposta efetiva” contra inimigos, monstros, ou seja, nossas bruxas da contemporaneidade.

 

Ando me espantando com o afastamento da racionalidade, onde há muita indignação com o resultado que desagrada (ainda que haja fundamento) e muita compassividade com o resultado que agrada (ainda que seja absurdo). Ou seja, a pauta não tem baliza, mas o sentimento interno de justiça que faz caber e não caber qualquer coisa a depender do que mexe ou não com as próprias vísceras. 

 

Parece que se quer a institucionalização em massa de "Tribunais de Nuremberg", como peças ficcionais a confirmar e afagar com ares de racionalidade decisões que já foram previamente tomadas. 

 

É preciso retornar para a racionalidade, com alguma linha mestra, sob pena de perdermos de vez a noção do que é direito e dever e voltarmos para a premissa da barbárie e da prevalência da força bruta. E neste ambiente, a maioria sucumbe e, muitas vezes, das piores formas possíveis. E quanto a barbárie é maquiada com uma bonita formalidade, a perversidade tende a se agravar a custa sabe-se lá de quem.

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