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Dia da Mulher e o Direito: retratos de uma vida instagramável

Talvez mais do que nunca é preciso pensar os mecanismos de proteção jurídica da mulher em um mundo cada vez menos afeito a furar bolhas


08/03/2023 10:28 - atualizado 08/03/2023 11:45
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Pintura em desenho com olho humano chorando com a representação de pessoas se amontoando nos olhos para se transbordar em lágrimas.
No dia internacional da mulher há mais preocupação do que comemoração (foto: Flickr)


Por Hudson Cambraia

Hoje é o dia da mulher. Então é bom você, mulher leitora, se preparar porque é dia de receber uma flor aleatória e postagens bonitinhas nas redes sociais, afinal é seu dia né... Pois é, como eu acho isso insuportável, vou te poupar dessa parte e compartilhar uns pensamentos recentes sobre isso e sobre o meu quadrado (que dizem ser o Direito).

Sabe aqueles momentos de ócio (não criativo) em que você fica "passeando" de forma muito aleatória pelas milhares de publicações das redes sociais sem qualquer interesse específico? Bom, não sei se todo mundo funciona assim, mas há momentos em que eu faço isso até alguma coisa me chamar a atenção e aí eu paro.

Para tornar isso um pouco mais interessante, eu tenho o hábito de, por pura diversão, tentar enganar o algoritmo das redes sociais, mexendo cada dia em um assunto diferente e, com isso, impedir que ele aprenda do que eu gosto.

Daí, recebo os mais variados informativos, desde como comprar casas de luxo em Portugal, curso de phyton (o que é isso???), textos sobre cogumelos alucinógenos e curso de plantação de soja transgênica.

E numa dessas "passeadas" aleatórias eu me deparo com uma publicação que me chamou a atenção. Era um vídeo de uma mulher defendendo que existe um "privilégio feminino" e que o discurso sobre a questão da necessidade de proteção da mulher é falso. Segundo a interlocutora, não existe no mundo ocidental (sem explicar o recorte, preferiu não se limitar ao Brasil) um direito que um homem tenha que a mulher não tem.

Neste ponto, a interlocutora é interrompida pela entrevistadora, que diz: "Mas eu tenho medo de andar na rua." A interlocutora então pondera: "Mas isso é medo de violência e não tem nada a ver com o fato de ser mulher."

Segundo ela, os homens também têm medo de andar na rua e não se pode usar isso como argumento, pois os homens são as maiores vítimas de violência no país. Daí ela emenda com a pérola que me fez querer expor isso aqui. Ela disse: "Inclusive os homens são as maiores vítimas de violência doméstica. Não posso dizer o dado porque eu não tenho de cabeça".

Nesta hora a minha cabeça deu uma bugada. Confesso que acompanho esta temática há muito tempo (para terem uma ideia, crianças, meu TCC foi sobre a recém publicada Lei Maria da Penha, hoje já quase maior de idade) e eu não consegui imaginar de que cartola ela tinha extraído aquela informação.

Talvez por causa disso, e naqueles momentos em que a mão é mais rápida que o cérebro, eu fiz o que não devia: comentei a publicação. Disse que o argumento era falacioso e que afirmar que homens são mais vítimas de homicídio não qualifica o argumento para afirmar que homens são mais vítimas de violência doméstica!

Não surpreendentemente, recebi uma enxurrada de críticas e percebi que havia um problema muito sério a ser considerado ali, pois o questionamento quanto à lógica do raciocínio da interlocutora foi visto como uma "violação do espaço". Estava fora do "meu quadrado" (o que prova que, pelo menos desta vez, eu dei mais um tombo no algoritmo).

As respostas mais surreais de todas eu fiz questão de trazer aqui para vocês, porque eu não ia sofrer com isso sozinho:
Comentário de publicação em rede social, ocultando os autores das manifestações, com o seguinte conteúdo: 'A violência doméstica e o homem que sofre da. Uma pesquisada desinformado.' e 'Acontece e que só os casos de violência doméstica contra as mulheres é que é noticiado pela mídia porque gosta de enfatizar lacrar em determinado assunto quando uma mulher ameaça, mata prática alienação parental isso não é notícia na grande mídia é aplaudida. Homem quando vai na delegacia denunciar violência que sofre da mulher é debochado então só dão ênfase naquilo que querem'.
(foto: Instagram (print))
Comentário de publicação em rede social, ocultando os autores das manifestações, com o seguinte conteúdo: ''Andar na rua sem medo' foi a resposta pra deixar claro a alienação (emoji de riso)' e '(emoji de aplausos) por conta do feminismo hoje ofende dizer aquilo que é óbvio e ainda criaram uma lei para proibir homens de dizer aquilo que é óbvio que é a lei da violência psicológica, qualquer mulher pode processar a qualquer homem com base nessa lei, é a mordaça da idade média transformada em lei misandrica'.
(foto: Instagram(print))
Comentário de publicação em rede social, ocultando os autores das manifestações, com o seguinte conteúdo: 'Lugar mais machista aqui na minha cidade e o ponto de chapa, só vejo homens descarregando cargas de caminhões' e 'Elas n querem resolver o problema, querer lacrar em cima do problema, pra ganhar ibope e consequentemente ganhar dinheiro. Se o problema acaba, a bica seca.'
(foto: Instagram(print))
Comentário de publicação em rede social, ocultando os autores das manifestações, com o seguinte conteúdo: '@hudson.cambraia posso saber qual sua ideia? Mas antes deixa eu te falar a minhas soluções, vamo há primeira que é zerar a história da uma idade e obliterar todas as criaturas da terra, a segunda seria obliterar nós os homens menos você pois ficaria você e as mulheres na terra! Cara o corte é claro e a pergunta é clara. No vídeo está se falando de direitos da mulher ocidental e me vem você com outra história. Faz um vídeo e coloca na internet!'
(foto: Instagram(print))


E aí, nesse contexto, a dileta Daniele Andrade (que além de ser uma das pessoas mais agradáveis que eu já conheci na vida é movida à café, o que faz com que ela já tenha entrada vip no céu) me presenteou com o que eu precisava para fechar essa conta: dados. Ela me deu a edição da pesquisa "Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil", elaborada pelo Fórum de Segurança Pública e de autoria de Samira Bueno, Juliana Martins, Juliana Brandão, Isabela Sobral e Amanda Lagreca.

Ela me deu também a pesquisa "Percepções sobre controle, assédio e violência doméstica: vivências e práticas", do Instituto Patrícia Galvão/Ipec, de 2022. 

Nas duas pesquisas dá para ter uma ideia de que a realidade é um tanto diferente do mundo dos vídeos bem produzidos das redes sociais. Os números são assustadores e a expressão "epidemia de violência" não é usada de forma leviana.

O universo que estamos lidando gira em torno de 21,5 milhões de mulheres. Só de ameaças ou tentativas de homicídio com arma de fogo estamos lidando com um número que alcança 3,3 milhões de mulheres (é maior do que a população de BH inteira, que é terceira maior capital do país).

Mas de todos os dados que essas pesquisas me forneceram, o que mais me chamou a atenção foi o de que nas pesquisas (mesmo anônimas) os homens não admitem terem praticado qualquer tipo de violência. Ninguém admitiu importunação em locais públicos, como praças e transportes públicos, mas 45% das entrevistadas informaram que já foram tocadas sem o seu consentimento nestes locais. Sobre abusos de natureza sexual, 31% das entrevistadas informaram ter sido vítimas de abuso ou tentativa de abuso de natureza sexual enquanto não se encontrou um único entrevistado que reconheceu ser autor destes atos.

Daí vem uma questão muito relevante para se pensar! Enquanto a gente discute normas, esquecemos que o Direito é muito mais antropológico do que gostariam os nossos acadêmicos. A gente continua a pensar o Direito desconsiderando que quem vive o Direito e pensa o Direito são as pessoas na rua e não os engomadinhos em seus gabinetes e salas de departamento das universidades. E é aí que mora o problema, pois simplesmente não adianta um canavial de normas jurídicas se a pessoa autora do processo de violência sequer se reconhece como tal!

É isso mesmo! Dá uma pesquisada aí na internet e você verá (se é que já não viu) que há uma revoada de homens que acreditam (a palavra é essa, pois é um ato de fé) que são as verdadeiras vítimas da sociedade feminista. Se você tiver um tempinho para gastar com isso, perceberá a quantidade de vezes que a expressão "privilégio feminino" aparece, como se o mundo existisse e fosse modulado para o regozijo e repouso feminino contra homens oprimidos.

 E sabe os dados que foram lançados no tal vídeo? Eles foram encontrados sim! Sabe onde? Na Wikipedia! Com todo o respeito aos gestores da Wikipedia, mas definitivamente não é um local para se extrair informações a pautar o nosso conhecimento de mundo, pois um número indefinido de pessoas pode se habilitar como editor dos textos. E as fontes são curiosamente paradoxais, pois citam o atlas de violência e quando você acessa a fonte direta (ou seja, o Atlas da Violência!) a informação é inversa.

Além disso, há todo um malabarismo com números para justificar o injustificável. E, acredite, não existe mecanismo mais eficaz para enganar alguém do que números. As pessoas são treinadas para acreditar que números são confiáveis, pois são matemáticos. Então se eu digo que acredito que homens são mais vulneráveis que mulheres em relação à violência, as pessoas tendem a questionar. Agora, se eu disser que, de acordo com o estudo da minha cartola, 92% dos homens são vítimas de violência residencial, a percepção é completamente diferente. Percebe?

E aí o que o malabarista faz? Pega um dado aqui (como o dado que demonstra que homens são mais vítimas de crimes violentos, sem considerar o fator idade, por exemplo), pega outro acolá (como o fato de que crianças do sexo masculino vítimas de violência doméstica são encaixados na categoria homens vítimas de violência doméstica) e bate tudo no liquidificador! Pronto, temos um vídeo top para bombar nas redes sociais e alimentar esse sentimento bizarro de inflamação de uma "concorrência" que deveria ser combatida.

Nesta toada, a gente vai perpetuando um monte de barbaridades no mundo da vida, como a normalização de atos de violência. Ou pior! A eliminação da percepção de que determinadas condutas atingem a autodeterminação do outro. Qualquer coisa precisa ser estudada e refletida seriamente.

Eu não quero aqui afirmar que homens não são vítimas de violência, o que seria um falseamento ignorante da realidade de minha parte. Também não quero generalizar o mundo da vida, reduzindo a sua complexidade, pois é uma falácia comum e fácil de cair, como se fosse possível retratar a vida a partir de um único recorte.

A questão é outra: é preciso começar a pensar o Direito a partir de uma premissa antropológica, o que é laconicamente ignorado pelos acadêmicos e pelos legisladores. É preciso começar a entender que a norma jurídica só tem sentido quando assimilada culturalmente no mundo da vida, sob pena de ser, como disse Lassale sobre uma Constituição que ignora a realidade, uma mera folha de papel. E por causa disso, a gente fica daqui discutindo de forma absolutamente estéril normas jurídicas enquanto tem uma galera de gente aí fora consolidando um raciocínio medieval no que se refere à convivência social.

 

Em resumo, a situação é muito mais dramática do que parece e ignorar este fato só piora as coisas. Talvez neste Dia da Mulher, em vez da insuportável prática de sair distribuindo flores aleatoriamente como se vivêssemos em Nárnia, seja um bom momento para discutirmos seriamente (e continuamente) como lidaremos com a construção do pensamento de um número indefinido de pessoas que estão por aí convivendo com a gente. Estou falando de homens e mulheres habituados e inflamados (por ferramentas de comunicação) a pensar com o fígado e não com cérebro sobre determinados assuntos e, com isso, reproduzindo práticas sociais execráveis e normalizando o que deveria causar horror de constrangimento.

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