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Estado de Minas ARTIGO

Obrigação de denúncia em casos de estupro transforma vítimas em criminosas

Projeto de Lei é tentativa de coagir meninas e mulheres a não buscar ajuda por medo de violências de profissionais de saúde, polícia e sistema judiciário


04/09/2023 10:00 - atualizado 05/09/2023 14:45
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Colagem de uma menina sentada em um cadeado ao centro da imagem. Ao lado, uma mão roxa entregando chaves a uma outra mão, laranja
(foto: Giulia Santos/AzMina)

Por Tainã Góis

Está em pauta na Comissão da Mulher da Assembleia Legislativa de São Paulo uma infeliz herança deixada pela ex-deputada Janaína Paschoal: o Projeto de Lei (PL) 582/2020. O texto pretende impor aos agentes de saúde a obrigatoriedade de informar as autoridades policiais em caso de atendimento de pessoas que procurem o protocolo de aborto decorrente de estupro. 

PL vai ainda mais longe, propondo também que seja obrigatória coleta e guarda de tecidos fetais ou embrionários, ou seja, de material biológico da paciente, de forma a possibilitar perícia genética para identificação do autor do crime.

A ex-deputada e professora de Direito Penal, Janaína tenta se precaver de críticas, alegando que não pretende criar restrições ao acesso à serviços de abortamento em casos autorizados por lei. Apesar disso, faz constar da justificativa do projeto que a “liberdade excessiva” de realização de procedimentos de interrupção de gravidez sem ordem judicial tende a “banalizar a prática e facilitar o aborto em situações não autorizadas por lei”.

Repetindo a mesma visão carente de dados e avessa à ciência que informa muitos argumentos a favor dos direitos reprodutivos, a proposta do PL parte de um diagnóstico fantasioso sobre a realidade da vida das pessoas que procuram serviços de abortamento. 

NINGUÉM QUER BURLAR A LEI

Há uma caracterização preconceituosa que acredita que quem busca o protocolo de interrupção de gravidez são mulheres adultas que querem burlar a lei. Mas a realidade do Brasil é que as principais vítimas de gravidez decorrente do crime de estupro são crianças.

No ano de 2020, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a cada hora, 4 meninas de até 13 anos foram estupradas no país. Entre 2015 e 2019, no Brasil, 67% dos estupros tiveram como vítimas meninas com idade entre 10 e 14 anos. Entre estas, prevalecem as meninas pretas e pardas (64,18%). 

A ideia de que existe uma excessiva facilidade de acesso ao atendimento pelo protocolo de interrupção de gravidez legal também não resiste aos dados. Segundo o Ministério da Saúde, no primeiro semestre de 2020, o número de mulheres atendidas em todo o país pelo SUS em razão de abortos malsucedidos foi 79 vezes maior que o de interrupções de gravidez previstas pela lei. A maior parte das pessoas, portanto, opta por abortar sozinha e só depois procuram o sistema de saúde. 

Antes de acusar essas pessoas de praticar aborto criminoso, é bom lembrar da recorrência de casos como a crueldade cometida no ano passado contra a criança de 11 anos que, grávida em decorrência de estupro, teve o direito ao aborto legal negado pelo sistema de saúde e pela Justiça de Santa Catarina. Para que não haja dúvidas da perseguição ideológica, até mesmo as advogadas da criança foram indiciadas pela polícia.

SIGILO MÉDICO 

Recentemente, a Revista AzMina publicou uma reportagem que aponta como, desde 2022, tem crescido o número de processos judiciais contra mulheres brasileiras acusadas de realizar um aborto ilegal. Um estudo realizado no Paraná, revelou que em 44% dos casos a investigação criminal decorre de denúncias realizadas pelos próprios profissionais da saúde – que violam o sigilo profissional e agem de forma ideológica, antiética, e ilegal. 

Não bastasse a incoerência com a realidade, o PL 582/2020 ainda está na contramão da legislação nacional e dos entendimentos judiciais que organizam o direito ao aborto legal no Brasil. 

A Constituição Federal e a Lei de Contravenções Penais vedam a obrigatoriedade de comunicação de crime por profissional da saúde nos casos em que a notificação possa expor o paciente a procedimento criminal. Ainda, a Lei Federal nº 13.931/2019 determina que a comunicação de crime de violência contra a mulher por profissional da saúde ou assistência social deve preservar e impedir a identificação da vítima. Não menos importante, em 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional lei que gera obrigatoriedade de coleta e armazenamento de material biológico decorrente de gestantes e parturientes.

PRECISAMOS CUMPRIR A LEI

Ao contrário do PL que a deputada Janaina propôs, a situação no Brasil demanda ações para garantir o direito ao aborto nos casos previstos pela lei há décadas, mas constantemente negado por nosso sistema de saúde. 

Com o pretexto de investigar o crime de estupro, o projeto na verdade é mais uma tentativa de coagir meninas e mulheres a não buscar ajuda por medo de novas violências de profissionais de saúde, polícia e sistema judiciário.

Tomo emprestadas a argumentação da Débora Diniz na audiência pública sobre o aborto no STF em 2018: a discussão de políticas públicas sobre aborto não deve partir da questão de sermos contra ou a favor, mas do entendimento concreto de quais são as práticas das brasileiras. “As pessoas não vão deixar de abortar por conta de uma lei estadual, mas podem deixar de procurar atendimento médico especializado por medo de enfrentar a Justiça.”

MECANISMO PERVERSO

Somamos índices assustadores de estupros de menores de idade e altas taxas de mortalidade decorrentes de abortos desassistidos. Diante disso, sobrecarregar o já limitado direito de acesso ao serviço de saúde – com o dever de responder às autoridades policiais – é um mecanismo perverso que só pode ter como resultado aprofundar desigualdades.

Barrar o PL 582/2020 é importante não só pela vida das mulheres paulistanas, mas também para combater a onda conservadora que tenta transformar em “matéria de prisão” um problema social que demanda “cuidado, proteção e prevenção”.

Acesso o site https://www.servitimanaoecrime.org/. Saiba mais e ajude a impedir mais esse retrocesso.

Tainã Góis, advogada e doutoranda em Direito pela USP, assessora jurídica da Deputada Estadual Ediane Maria.
 
Para ler a reportagem original, acesse o portal d'AzMina.

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