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Estado de Minas

Calote leva comércio a abandonar o "fiado"

Desemprego e queda de renda levam até cliente assíduo da famosa caderneta a deixar de honrar as dívidas no fim do mês. Comerciantes limitam a modalidade com medo de calote


postado em 20/07/2015 06:00 / atualizado em 20/07/2015 07:26

Sucessor da quarta geração de empresa familiar, Roney Almeida, da Mercearia Paraopeba, vetou novos clientes no fiado(foto: Beto Novaes/EM/D.A Press - 3/7/15)
Sucessor da quarta geração de empresa familiar, Roney Almeida, da Mercearia Paraopeba, vetou novos clientes no fiado (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press - 3/7/15)
A palavra de honra, levada a sério em outros tempos e ainda hoje tão admirada, sofre o impacto da retração das vendas do comércio. Armazéns e bares que mantêm vendas na famosa caderneta, apostando na honestidade de seus clientes, agora querem reduzir o número de consumidores que “penduram” a conta até o fim do mês. Na contramão dessa difícil decisão para o dono do negócio, num momento de aperto, com o desaquecimento da economia, aumentou cerca de 20% a parcela dos adeptos do fiado em estabelecimentos da capital e do interior.

Temerosos pelos calotes, comerciantes ouvidos pelo Estado de Minas passaram a dizer não a novos “mensalistas”, mas, a duras penas, vêm mantendo a tradição para os antigos clientes. Alguns já perderam tanto com a inadimplência que com os valores não pagos poderiam comprar até mesmo um carro zero-quilômetro.

O temor é reforçado por indicadores vitais da economia. Dados da Federação do Comércio de Minas Gerais (Fecomércio MG) mostram que o endvidamento dos consumdores de Belo Horizonte atingiu 62% em junho, a maior taxa do ano e o mais alto percentual registrado nos últimos 28 meses, desde os 74% de fevereiro de 2013. O índice retrata o nível dos compromissos financeiros adquiridos, seja com financiamento de imóveis e carros, seja com empréstimos pessoais.


De acordo com levamtamento feito pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) Brasil, no fim de maio havia nada menos de 56,5 milhões de CPFs negativados no país. Ou seja, a cada 10 brasleiros, quatro têm alguma conta pendente. A situação assusta os comerciantes que vendem fiado e apostam na palavra dos clientes.

Em Itabirito, na Região Central de Minas Gerais, Isabel Luzia Silva, de 78 anos, tentou pendurar sua conta na Mercearia Paraopeba, mas o dono do estabelecimento, Roney Antônio de Almeida, não aceita mais novos nomes na caderneta, um serviço antigo oferecido pela empresa. “Não posso mais fazer anotações para novos clientes porque, senão, terei prejuízo”, enfatizou.

O ‘não’ na Mercearia Paraopeba é novidade e resultado da crise econômica. O medo de Roney, perito no fiado, é o mesmo dos comerciantes da capital. No Bairro do Prado, na Zona Oeste de BH, Élcio Santos, há 13 anos no ramo, diz que sempre aceitou pendurar a conta dos seus clientes. Tanto é que cerca de 30 pessoas frequentes no estabelecimento podiam acertar as contas no fim do mês.

“Mas, este ano, a retração na economia trouxe impacto para todo mundo. As pessoas estão deixando de consumir e o comércio não vai bem”, comenta Santos. Há três meses ele teve problemas de saúde, que segundo os médicos que procurou, podem estar associados à situação financeira do bar. “Por isso estou voltando ao batente, mas, para sobreviver, não posso mais vender fiado”, avisa.

O comerciante conta que durante o período em que se afastou do negócio para cuidar da saúde, muitos clientes da lista da caderneta perderam o emprego e não voltaram para pagar a dívida. Os débitos somam, mensalmente, algo em torno de R$ 3 mil, segundo Élcio Santos. “Há muita gente honesta, que paga tudo em dia. Mas, agora, preciso recuperar meu comércio, ter dinheiro para repor os produtos e me manter. Caderneta, só para quem for conhecido e cumprir com a palavra”, garante.

Ao fazer compras, Isabel Luiza tentou, mas não conseguiu pendurar a dívida
Ao fazer compras, Isabel Luiza tentou, mas não conseguiu pendurar a dívida
Há sete anos, Salvador Fonseca, dono da Mercearia Colombo, no Bairro de Santa Teresa, na Região Leste, vende fiado a clientes antigos e novos. Além da lista com os nomes de cerca de 70 pessoas que pagam no fim do mês, há ainda bloquinhos de notas de quem deve, pelo menos, um cigarro avulso ou uma cerveja. “Já levei tanto cano nessa história que, se fosse somar, daria para comprar um carro zero-quilômetro, só com o que me devem”, calcula Salvador.

As dívidas no pendura da Mercearia Colombo alcançam cerca de R$ 10 mil por mês. “Neste ano, no entanto, está difícil manter o hábito. Não aceito mais novos clientes e estou pensando em acabar com a caderneta para muita gentes. Há pessoas que devem, por exemplo, R$ 800, pagam R$ 500, e ficam devendo o restante. Não dá”, reclama Salvador, que vai privilegiar só quem está em dia.

Fiado

2,699 milhões
Domicílios brasileiros enquandrados em situação de insegurança alimentar, por risco de ficar sem comida ou impossibilidade de suprir as necessidades da família, que fizeram compras na base da confiança

1,731 milhão
São os domicílios na mesma situação em que os membros da família pediram alimentos emprestados a parentes, vizinhos ou amigos

Fonte: Pnad/ 2013 do Insituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

Melhor é conter endividamento

O consultor financeiro Erasmo Vieira alerta que é preciso ter cuidado com as vendas no fiado. “Para vender assim, o comerciante tem que ter dinheiro ou uma reserva. Se ele compra de um fornecedor um arroz, por exemplo, e um consumidor compra e não lhe paga, ele acumula dívidas. Depois de um mês sem pagamento, começará a ter prejuízos”, diz. Diante da deterioração dos indicadores da economia, Erasmo desaconselha o cliente  endividar-se neste momento. “É comprar o que pode e pagar à vista. As contas de luz e de água encarecem e é preciso ter controle bem justo do que se paga e deve”, afirma.

Na Mercearia Paraopeba, em Itabirito, entretanto, a caderneta está lotada. “A crise financeira sempre existiu para quem compra fiado. E, geralmente, são pessoas honestas que quitam as dívidas, mesmo porque sabem que, no mês seguinte, vão precisar da ajuda de novo”, comenta Roney Almeida, o dono do negócio. Porém, ele diz que, de algum tempo para cá, tem percebido que a palavra de honra era mais valorizada nas antigas gerações.

“Os jovens, hoje, estão perdendo esse valor de quitar o que devem. Os antigos são mais honestos, talvez porque não têm a ambição de comprar uma nova televisão, um novo carro, um novo computador. A juventude de hoje quer de tudo e acaba devendo”, defende.

Roney revela que levou calote recentemente de uma jovem mulher, que lhe deve há um ano cerca de R$ 600. ”Já cobrei e até agora nada”, reclama. “Não posso ter prejuízo. O que ofereço fiado já é o suficiente. Há uma inadimplência, mas ainda consigo segurar. Se eu abrir para novas pessoas, corro o risco de ter prejuízos”, observa. Já na quarta geração, o estabelecimento, ponto turístico de Itabirito, tem mais de 150 anos e foi aberto pelo bisavô de Roney, Manuel. “Na época havia o escambo e ele trocava de tudo, tanto que temos o caderno com anotações de 1845”, diz Roney. O comércio da família foi passando de geração em geração, e sempre vendeu um pouco de tudo, de almentos a granel até objetos de decoração.

“Meu pai, também conhecido pelos apelidos de Juca, Nicolau e Jicolau, faleceu em novembro do ano passado e durante toda a sua vida se dedicou ao comércio. Ele mantinha as tradições, vendendo na caderneta”, conta Roney. Como um dos objetivos do lugar é valorizar o produtor local de Itabirito, Roney conta que muitas famílias levam o que produzem e trocam por outro item de necessidade. “A dona Cida, por exemplo, aqui da cidade, faz rosquinhas para eu vender aqui e, em troca, leva fubá. Se o fubá der R$ 100 e a rosquinha R$ 200, pago a ela a diferença”, diz. (LE)


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