Com a COP30 em curso em Belém, delegações do mundo vão discurtir o futuro do planeta. Mas o passado do estado, pertencente à Região Amazônica, trás a tona memórias do massacre étnico e linguístico no Brasil colonial, que neste domingo (9/11) poderia ser uma questão na prova do Enem. O Pará não é apenas um espelho d’água onde Portugal se reconhece; é também um espelho quebrado, cujos cacos refletem não só a luz, mas as sombras que a acompanham.
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Quando o navegante açoriano ou lusitano pisava na lama vermelha das margens, carregava no peito a saudade de uma capela, de um sino, de um nome que lhe lembrasse a terra perdida. Esse nome não era mero rótulo; era oração. Era âncora. Mas, para os povos originários, era também corrente e submissão. Cada povoado batizado com um nome português era, ao mesmo tempo, um ato de ressurreição para o colono e um ato de sepultamento para os indígenas. “Aqui, onde tudo era nosso, agora é deles”, sussurravam os ventos que antes carregavam nomes em tupi, em nheengatu, em línguas que não sobreviveriam ao batismo.
Os jesuítas foram os arquitetos desse duplo massacre: o da fé transplantada e o da memória arrancada. Chegaram com a cruz e a gramática, mas também com a certeza de que o mundo indígena precisava ser apagado para que o mundo cristão pudesse nascer. Em 1653, o padre Antônio Vieira pregava em São Luís e já sonhava com uma “nova Lusitânia” na Amazônia, mas essa nova Lusitânia não tinha espaço para os antigos donos da terra. Os companheiros dele, menos célebres, mais implacáveis, erguiam aldeias como quem constrói prisões disfarçadas de igrejas. Cada missão era um portal: de um lado, o indígena nu, com seus ritos, suas línguas, seus deuses; do outro, o santoral português, imposto com água benta e chicote. O nome não era tradução; era substituição. Traduzir o invisível em visível, sim, mas à custa de tornar invisível o que já existia.
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Desencontros de mundos
Santarém, por exemplo, não nasceu de um encontro de águas, mas de um desencontro de mundos. Em 1661, os jesuítas fundam a missão de Tapajós no ponto exato onde o rio claro abraça o rio escuro. Escolhem o nome da cidade ribatejana porque, para eles, ali também dois rios se encontram sem se misturar de imediato — símbolo perfeito da Encarnação. Mas para os tapajós que ali viviam há milênios, aquele lugar não era símbolo; era lar. Chamavam-no Maúri, ou algo que o tempo apagou. Quando os padres chegaram, Maúri tornou-se Santarém, e os tapajós que não se converteram foram deslocados, escravizados ou exterminados. Séculos depois, o viajante sente o pôr do sol como uma hóstia dourada sobre as águas, mas não ouve os gritos que o rio carregou. As ruínas jesuítas são eloquentes, sim, mas falam apenas uma língua.
Alter do Chão é a epifania da violência disfarçada de harmonia. Os jesuítas não a fundaram, mas a renomearam. “Alter” vem de “altar”: um altar natural, uma ilha de areia branca que surge na vazante. Os índios borari já a chamavam de lugar sagrado, com cerimônias que duravam dias, com cantos que faziam o rio dançar. Os padres viram nisso a mão de Deus, mas uma mão que precisava ser cristã. Batizaram-na Alter do Chão para que o sagrado indígena fosse absorvido, não respeitado. Os rituais borari foram proibidos, os xamãs perseguidos, os nomes esquecidos. Hoje, quando o turista mergulha nas águas mornas, não sabe que está num batistério onde o batismo foi forçado. A Amazônia não faz as vezes de Jordão; faz as vezes de túmulo.
Barcarena é o milagre da memória seletiva. Em Portugal, Barcarena é um bairro de Oeiras onde o Tejo se abre para o mar. No Pará, foi uma fazenda jesuíta antes de ser vila industrial. O nome veio num barco: um colono minhoto, vendo o rio Pará se alargar, murmurou “parece Barcarena”. O padre anotou. Mas antes de Barcarena, aquele lugar tinha outro nome, em uma língua que os jesuítas não se deram ao trabalho de aprender. Os indígenas que ali pescavam e plantavam foram reunidos em aldeamentos, separados de suas terras, obrigados a falar português e a rezar em latim. Hoje, entre as chaminés e os navios, o eco de um fado é abafado pelo ruído das máquinas, e o nome indígena jaz no fundo do rio, como um corpo que nunca foi enterrado.
E Belém? Belém do Pará é o coração do mistério, mas também da contradição. Fundada em 1616, foi chamada Belém porque ficava na foz de um grande rio, como o bairro lisboeta, e porque queriam que fosse a “casa do pão”. Mas o pão que os indígenas comiam era de mandioca, e a casa que tinham era a floresta. Quando os portugueses chegaram, a floresta foi queimada, a mandioca confiscada, os nomes trocados. O Círio de Nazaré, que arrasta milhões, é a procissão mais portuguesa que Portugal nunca teve, mas também é a procissão que desfila sobre os ossos de quem foi silenciado. Quando a corda é puxada e a Berlinda avança, não é só Portugal que volta para casa; é também o esquecimento que se celebra.
Por isso o Pará é o Portugal no Amazonas: não porque continue, mas porque "substitui". Lá, a colonização não transfigurou; violou. Os nomes não são sementes; são lápides. Cada homônima é uma árvore que cresceu sobre um túmulo, e, no fundo de cada rio, de cada igreja, de cada olhar caboclo, ainda brilha a luz dos navegantes de quinhentos — mas também a escuridão dos que foram apagados para que essa luz pudesse brilhar.
