Ameaças de estupro coletivo, mensagens de ódio, promessas de execução e exposição digital. Nas últimas semanas, deputadas estaduais de São Paulo passaram a relatar uma escalada de violência, reacendendo o debate nacional sobre a segurança de mulheres na política. A ofensiva levou à criação de uma frente emergencial de enfrentamento à violência política de gênero na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp).
Em meio à ausência de mecanismos legais específicos no estado, parlamentares paulistas passaram a buscar referências fora. Minas Gerais, único estado brasileiro que já conta com uma lei estadual voltada ao tema, virou modelo.

Beatriz Cerqueira (PT)Deputada estadual
Gladyson Rodrigues/em/d. a press
Sancionada em 2023 pelo governador Romeu Zema (Novo), a legislação mineira define o que caracteriza a violência política de gênero, orienta a atuação dos órgãos públicos e estabelece medidas para prevenção, acolhimento e responsabilização. Desde que vieram à tona os episódios de agressões em São Paulo, o texto passou a ser consultado por parlamentares de outros estados que buscam construir respostas institucionais mais robustas.
Para entender como o estado se tornou pioneiro neste campo, o Estado de Minas conversou com as deputadas que lideraram a aprovação da norma: Bella Gonçalves (Psol), Lohanna França (PV) e Beatriz Cerqueira (PT). Elas foram alvos de uma série de ataques e ameaças entre 2022 e 2023 e relatam que a proposta legislativa nasceu diretamente da experiência de violência vivida no exercício do mandato.
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“Recentemente, quando as companheiras de São Paulo foram atacadas também por ameaças de morte, nós entramos em contato com elas e fizemos a sugestão para que no estado mobilizem a aprovação de uma lei para enfrentamento da violência política de gênero”, conta Bella Gonçalves. Segundo ela, essa articulação entre estados e mandatos é parte de um esforço coletivo por sobrevivência institucional: “Estamos articuladas em redes de parlamentares, mulheres, de movimentos sociais. Como a gente pode construir um arcabouço legal, que nos proteja em todos os níveis e instâncias. Isso é fundamental para garantir a nossa vida.”
Lohanna França (PV)Deputada estadual
Gladyson Rodrigues/em/d.a press
A inspiração em Minas tem base concreta. O projeto foi aprovado após uma série de casos envolvendo perseguições. As três — Bella, Lohanna e Beatriz — foram atacadas com discursos de ódio nas redes sociais e dentro do próprio parlamento. Algumas das ameaças recebidas mencionaram morte, agressões físicas e perseguição política sistemática. A ausência de um arcabouço legal impedia, na prática, que o sistema de Justiça reconhecesse as situações como violência política.
“Foi um processo muito doloroso. Além da insegurança gerada pelas ameaças, o que nos atingia era a sensação de desamparo. Eu vivi situações ruins na delegacia, e quando procurei o Judiciário, o caso nem sequer foi tratado como violência política. Faltava uma base legal”, relata Beatriz Cerqueira, ao relembrar as ameaças ao lado das colegas. A deputada teve o nome envolvido em campanhas de difamação e recebeu ameaças anônimas, sem resposta imediata do sistema institucional.
Para Lohanna França, a iniciativa no estado foi resposta direta à ausência de instrumentos legais diante da violência sofrida. “Minas Gerais foi pioneira ao aprovar lei estadual voltada à violência política de gênero. Fomos vítimas, eu, Beatriz Cerqueira e Bella Gonçalves. E a partir disso criamos a primeira legislação estadual que trata do tema. E temos buscado desde então a sua regulamentação.”
O projeto foi articulado com base em experiências anteriores e na mobilização da bancada feminina da ALMG. A lei define o que é violência política de gênero, estabelece medidas de prevenção, acolhimento e responsabilização, e orienta a atuação dos órgãos públicos — do Judiciário à segurança pública, passando pelo Ministério Público e pela própria Casa legislativa. Desde então, Minas passou a ser referência para outros estados e para entidades que monitoram violência política no Brasil.
“O protagonismo de Minas Gerais deve-se, infelizmente, ao fato de que nós somos um estado recordista na violência contra a mulher”, diz Bella. “O motivo que fez com que a bancada feminina da Casa, em especial a bancada de oposição, construísse esse projeto de lei, aprovasse, e hoje seguimos na cobrança da sua regulamentação. Infelizmente, ainda o Judiciário e as polícias têm uma resistência de configurar esse novo crime, que é o crime da violência política de gênero.”
A legislação ainda enfrenta obstáculos para ser plenamente implementada. Em Minas, tramita um projeto de resolução coletiva que prevê alterações no regimento interno da Casa, com o objetivo de coibir práticas de violência simbólica e verbal entre parlamentares. A proposta enfrenta resistência dentro do próprio Legislativo, mas as autoras acreditam que a existência da lei já mudou a forma como as instituições respondem às denúncias.
“Ter uma lei muda a forma como as instituições se posicionam”, explica Beatriz. “Elas passam a ter onde se apoiar, deixam de depender da interpretação individual de promotores, juízes, delegados. Isso nos deu mais segurança para denunciar, porque antes era um processo desgastante, solitário.”
Protagonismo
A cientista política Camila Veiga, da UFMG, aponta que o projeto mineiro rompe com uma tradição centralizadora da política pública brasileira. “A maior parte das legislações sobre temas estruturais nasce em Brasília. O que Minas fez foi deslocar esse centro e provar que uma Assembleia pode assumir protagonismo em um debate nacional. Isso muda a correlação de forças.” Mas ela pondera: o texto legal é só o começo. “A aplicação efetiva depende de regulamentações internas, formação de servidores e enfrentamento da violência simbólica e institucional que muitas vezes começa dentro dos parlamentos. É lá que se reproduz o discurso que autoriza a violência de fora.”
Na avaliação das deputadas ouvidas, a experiência de Minas Gerais pode ser um catalisador de mudanças em nível nacional. Não apenas pela legislação em si, mas pela articulação política que ela representa. “Quando São Paulo avança, todas avançamos junto”, resume Lohanna França.
O debate tem se intensificado em outras regiões do país. Atualmente, projetos semelhantes tramitam em São Paulo, Pernambuco e Distrito Federal, mas nenhum foi ainda aprovado. Enquanto isso, relatórios de entidades independentes mostram a urgência de medidas efetivas. Segundo o Instituto Marielle Franco, 98% das vereadoras negras já sofreram violência política.