"A primeira PEC da Impunidade, em 2021, pretendia submeter a prisão de parlamentares à aprovação do Congresso"

crédito: Joédson Alves/Agência Brasil

É muito grave a tentativa de deputados federais de aprovar medida que transforma os parlamentares numa casta acima da lei. Além de inconstitucional, tem sérias consequências para a democracia republicana e para a sociedade. Politicamente representa uma investida sobre as prerrogativas do Poder Judiciário e ato contra o processo judicial.

É uma ofensa ao preceito constitucional, inarredável na democracia, de igualdade de todos perante a lei. No plano social, instituiria uma linhagem privilegiada, com poder para autorregular a apuração e punição de crimes que possa ter cometido. É a segunda vez que a Câmara dos Deputados tenta blindar deputados de processos criminais. A primeira PEC da Impunidade, em 2021, pretendia submeter a prisão de parlamentares à aprovação do Congresso. Foi engavetada por causar repercussão muito negativa na sociedade.

A principal consequência da segunda PEC da Impunidade é proteger parlamentares suspeitos de conspirar contra o estado democrático de direito e outros indiciados ou investigados por corrupção. Acobertaria também, eventuais crimes de assédio sexual, violência contra a mulher e homofobia, que já foram punidos em Assembleias Legislativas Estaduais e Câmaras de Vereadores. São crimes comuns. Não se justificam pelo exercício do cargo político eletivo.

Tudo que se apura sobre o projeto indica a busca da impunidade por crimes comuns. É importante ressaltar que deputados e senadores não podem ser processados por atos ligados ao exercício da representação parlamentar, como opiniões, votos e iniciativas legislativas. É proteção correta e democrática. O que se pretende com a PEC da Impunidade 2.0 é livrá-los de inquéritos por delitos dissociados da função parlamentar. Os parlamentares, no passado, eram favoráveis à prerrogativa de foro e a defenderam de todas as tentativas de eliminá-la.

Em 2019, cogitaram ampliá-la limitando os poderes de juízes de primeira instância. Diante dos inquéritos no STF contra parlamentares, principalmente sobre fake news e atos golpistas, querem eliminá-la para que os processos voltem à primeira instância.

Entre as ideias que circulam na Câmara dos Deputados, consta a autorização da Mesa Diretora para abertura de inquéritos, uma prerrogativa das autoridades encarregadas do processo judicial, portanto, uma invasão de esfera alheia ao Poder Legislativo. Querem também a quebra do sigilo de justiça, inclusive na fase de inquérito. O pretexto, desta última providência, seria garantir o devido processo legal e o direito ao contraditório. Justificativa falaciosa. Este direito diz respeito à fase de julgamento, quando o indiciado se torna réu, e está preservado. Não pode ser estendido à fase de investigação, antes de encerrada toda a coleta de provas.

A imunidade ampla, geral e irrestrita desejada por parlamentares é abusiva, ilegal e antidemocrática. É um projeto de poder e de impunidade. Se esse plano legislativo tivesse sucesso, levaria à captura de prerrogativas do Judiciário. A mesma pulsão que levou à dominância legislativa sobre o orçamento, invadindo área do Executivo. O efeito institucional é desequilibrar a estrutura republicana e desorganizar o processo político democrático.

É uma afronta à Constituição. Suas cláusulas pétreas, que não podem ser mudadas por emenda constitucional, asseguram os direitos e garantias individuais. Entre eles está o direito à igualdade que inclui, expressamente, o direito à igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Portanto, iniciativas para proteger um determinado grupo do alcance da lei, do processo judicial, cairão por inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. Este, com certeza, será provocado a se manifestar. É, no fundo, mais um ataque ao Poder Judiciário, um ato deliberado de conflito entre Poderes por parte de parlamentares que temem o braço longo da lei.

O exame de constitucionalidade deveria barrar qualquer projeto desta natureza na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, se ela levasse a sério suas atribuições regimentais. É dela a decisão sobre aspectos constitucional, legal, jurídico, regimental e de técnica legislativa de projetos, emendas ou substitutivos. Em boa hora, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, antecipa o juízo que caberá à CCJ sobre a inconstitucionalidade da PEC. As decisões no parlamento são sempre mais políticas do que jurídicas, mas a obediência e observação da Constituição são obrigações às quais um parlamentar não poderia se furtar.