Morte e vida no México

Escritora mexicana ergue casa com muitos segredos

Nascida em Guadalajara e fã de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, Ave Barrera conta história de poder, erotismo e sacrifício em "Restauração"

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Maria Fernanda Vomero

Especial para o EM

O dicionário oferece alguns sinônimos para o verbo “restaurar”: reparar, restabelecer, consertar, recuperar. Os termos sugerem um certo exercício de conciliação entre o presente que se vive e o passado fixado na memória ou nas coisas, numa tentativa de ao menos contornar as intervenções do tempo (algum dano, mudança ou processo de deterioração).

Em “Restauração”, segundo romance da coleção Capitais & Cafundós da editora Incompleta, a escritora mexicana Ave Barrera retoma aspectos de uma obra de culto da literatura de seu país, o experimental “Farabeuf” (1965), do mexicano Salvador Elizondo, para reparar e restabelecer uma perspectiva feminina sobre desejo, sexo e consentimento.

Muitos fios se entrelaçam em uma trama que consegue sustentar o mistério e a tensão até o fim. A jovem restauradora Min aceita a incumbência de recuperar uma antiga mansão neocolonial, que pertenceu a dom Eligio Vargas, tio-avô de Zuri, rapaz por quem está apaixonada. O casarão, que aparentemente permaneceu fechado durante três décadas, conserva não apenas a imponência, mas também segredos de seus antigos moradores. Além da mansão, Zuri também herdou do tio-avô a paixão obstinada pela fotografia.

A arquitetura da casa é descrita em minúcias. Conforme Min vai restaurando os ambientes e as estruturas do imóvel, episódios da história de Gertrudis, a esposa de Vargas e mãe de suas filhas gêmeas, se tornam cada vez mais evidentes. A narração em primeira pessoa começa a (con)fundir-se, mantendo a ambiguidade sobre a natureza daquilo que é contado – se é memória ou imaginação – e sobre quem, de fato, conta.

Há também momentos de uma condução onisciente, distanciada, em terceira pessoa, e trechos em que uma voz se dirige a Zuri, durante uma sessão de fotos que simula um ritual erótico guiado pelo oráculo chinês I Ching, em remissão direta a passagens de “Farabeuf”. Naquele livro, descrições fragmentadas de uma terrível tortura se misturam à busca pelo êxtase sexual. Em “Restauração”, um personagem inspirado em Elizondo participa da trama.

Em termos formais, a autora utiliza efeitos de montagem cinematográfica, ao combinar cenas, pontos de vista e temporalidades diversas sem evidenciar a passagem entre elas. Embora as peças da narrativa pareçam bem embaralhadas, a um leitor atento não escaparão detalhes importantes que funcionam como elos entre as diferentes facetas da história. O texto igualmente evoca “Pedro Páramo”, clássico mexicano escrito por Juan Rulfo. Em entrevistas, Barrera admitiu o fascínio pela obra do escritor e afirmou “jogar” com as regras do universo rulfiano.

O quartinho dos fundos das mansões dos “patriarcas” – seja o Barba Azul do conto de Charles Perrault, seja dom Eligio Vargas – continua representando o lastro insistente das dinâmicas masculinas de poder sobre os corpos das mulheres em nome de uma suposta autoridade e de um erotismo sacrificial. Sem cair em maniqueísmos, a autora restaura perspectivas esquecidas ou silenciadas. “Restauração” proporciona uma leitura que continua a ressoar, mesmo quando o livro se encerra.

MARIA FERNANDA VOMERO é jornalista e doutora em Artes Cênicas (USP)

"Marcador de estrelas", obra da pintora surrealista Remedios Varo (1908-1963)
"Marcador de estrelas", obra da pintora surrealista Remedios Varo (1908-1963) Reprodução

“Tornei-me escritora com o ‘abraço’ de Guimarães, Pessoa e Lispector ”

“Adoro o português, sua cadência, a poesia de suas palavras e aquele estranho jogo de diferenças e proximidade que ele tem com o espanhol. Estudei a língua portuguesa na licenciatura em Letras e foi sob o abraço de Guimarães (Rosa), (Fernando) Pessoa, (Clarice) Lispector e (Mia) Couto que me tornei escritora. É por isso que, com esta tradução do meu romance ‘Restauração’, sinto que se estabelece uma pequena correspondência. Os romances, quando chegam a outros idiomas, não apenas se abrem para um novo território, mas também para a possibilidade de outras perspectivas. Conectar-se com esse outro coração, por trás de um olhar alternativo, mas empático, parece-me o ato mais profundo de magia. Sinto-me muito grata à editora Incompleta e à talentosa Marina Waquil por serem as arquitetas; graças a elas, ‘Restauração’ tece sua mágica entre os leitores do Brasil. O convite é deixar-se seduzir pelo seu mistério.”

Ave Herrera, autora de “Restauração”, em depoimento ao Pensar

“Restauração”
• De Ave Barrera
• Tradução de Mariana Waquil
• Incompleta
• R$ 68

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