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Milton Hatoum sobre livro de Lina Meruane: 'Gostaria de ter escrito'

Escritor brasileiro apresenta a nova edição de 'Tornar-se Palestina', sucesso da autora chilena, com mais de 15 mil exemplares vendidos no Brasil

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“A escritora de ascendência palestina convida o leitor a acompanhá-la na compreensão do que é ser palestino. Será uma viagem civilizatória que não necessita de concordância. Basta ser humano.” Assim a jornalista Dorrit Harazim apresenta “Tornar-se Palestina”, livro da chilena Lina Meruane que foi editado pela mineira Relicário e já vendeu mais de 15 mil exemplares no Brasil. Jornada de autodescoberta a partir de viagens da autora ao Oriente Médio em busca de suas origens e dividido em duas partes, “Tornar-se Palestina” acaba de ganhar segunda edição, com apresentação do brasileiro de ascendência libanesa Milton Hatoum (“Dois irmãos”) e uma terceira parte: “Rostos em meu rosto”.

Nascida em Santiago em 1970, Lina Meruane vive nos EUA desde 2000 e leciona Escrita Criativa na Universidade de Nova York. Ela veio ao Brasil para lançar a nova edição de seu best seller e falar também sobre o seu trabalho mais recente. No ensaio autobiográfico “Sinais de nós”, Meruane revisita a ditadura de Augusto Pinochet a partir de lembranças da infância, como a ausência repentina e inexplicada de colegas na sala de aula e a presença de agentes de segurança do ditador.

Depois de participar da Feira do Livro, em São Paulo, Lina Meruane estará neste sábado, às 12h, no Rio de Janeiro para conversar sobre a questão palestina na Bienal do Livro em companhia de Hatoum e da escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho, autora de “Gaza está em toda parte”. Leia, a seguir, trechos da parte inédita de “Tornar-se Palestina” e da apresentação assinada pelo autor de “Dois irmãos”.

Leia trecho inédito de “Tornar-se Palestina”, da chilena Lina Meruane, e da apresentação de Milton Hatoum para a nova edição do livro que já vendeu mais de 15 mil exemplares no Brasil


“Querem hierarquizar o caos da miscigenação”

Lina Meruane


“É na eterna fila de imigração do aeroporto parisiense onde me dou conta de que há anos venho reunindo evidências de que os rostos são signos confusos. Ao meu lado estão portadores de rostos que entregam seus dados para serem inspecionados enquanto tentam evitar o enraizado anseio racista de defini-los, distingui-los e diferenciá-los de uma população local igualmente diversa. Porque é nas fronteiras que se dá a tentativa de rotulá-los, estereotipá-los, estigmatizá-los. Avanço na fila dos estrangeiros, sabendo que fingir que a diferença não existe também pode ser racista: ser diferente não apenas não é negativo, como é um fato legítimo. Deveríamos insistir que ninguém é igual a ninguém, que cada corpo é uma variante do humano. É justamente isso que querem negar. Querem hierarquizar o caos da miscigenação. Querem estabelecer uma ordem, cadastrar a população. Uma tia distante que entende de demografia já tinha me explicado isso. Foi ela quem sugeriu que eu examinasse os censos quando lhe contei que viajaria a Paris para tratar do tema da migração palestina no Chile. Vá atrás dos censos, escreveu numa mensagem de texto. Lá vou eu, respondi, e lá fui antes de viajar ao catálogo da Biblioteca Nacional do Chile, no qual estavam prontos para ser baixados.


E foi folheando páginas amareladas digitalizadas na tela que avaliei os critérios de contagem estabelecidos em 1907, critérios que iam do gênero às ocupações e da educação às deformidades e doenças da população, até chegar às nacionalidades. Porque eu queria entender, para depois poder transmitir, o que os chilenos de antigamente tinham analisado ao traçar distinções. Descobri que, nos anos da migração do meu avô-ainda-Issa e da minha avó-ainda-Milade, as categorias eram muito grosseiras: a “população de almas estrangeiras”, como dizia o censo, era tão pequena que só classificavam os grupos em nações se suas almas fossem numerosas, porque, se fossem apenas alminhas, eles juntavam todas sob os impérios que as dominavam.


No exaustivo porém impreciso censo de 1907, constatou-se que os migrantes eram principalmente peruanos e bolivianos e espanhóis recém-chegados, seguidos de italianos, ingleses e alemães. Mas os árabes devem ter sido muitos entre os 1.729 catalogados como “Turquia”.

A exceção eram os 16 habitantes reunidos como “Ejipto”, pois já tinham se libertado dos otomanos. E como saber se eram árabes os quatro sujeitos que apareciam como “África”? Era mais inexato do que eu previra, mas eu devia levar em conta que, no início do século passado, algumas nações ainda eram etnias e religiões não constituídas como corpos políticos definidos por fronteiras.


A isso somava-se o fato de que o conhecimento geográfico e cultural dos recenseadores era escasso e que, por falta de equipe qualificada, o Estado teve de recorrer a centenas de voluntários para ir de porta em porta pelo comprido e estreito país. Não parei nesse censo: continuei procurando, possuída pela curiosidade e pela facilidade de acesso a um documento monumental que em outras circunstâncias, teria sido impossível conseguir. Somente 13 anos mais tarde, no amarfanhado censo de 1920, emergiam oito nações antes ausentes.

Uma nação: os “poloneses” encontravam seu lugar. Quatro: “sérvios”, “montenegrinos”, “eslavos” e “romenos”, anteriormente agrupados em “Balkans” (sic). As três nações restantes haviam retirado pessoas da “Turquia”, que entre um censo e outro baixou de 1.729 para 1.282: apareceram os “árabes” (1.849), diferenciados dos “palestinos” (1.164) e dos “sírios” (1.204), e não era estipulada a existência nem de libaneses nem de jordanos, mas sim de egípcios, que continuavam sendo escassos naqueles anos, apenas 23. Enquanto escrevia meu informe migratório, perguntei-me por que aqueles egípcios estariam separados dos árabes e dos africanos: seriam brancos? Seriam judeus?


Os recenseadores não sabiam dessas complexidades ou não tiveram tempo de perguntar ou não se preocuparam em tomar nota ou ninguém lhes disse que a cor ou a casta eram importantes entre os recenseados, por mais que essa questão continuasse viva nas preocupações do Estado. Fosse como fosse, quando os levantinos começaram a fazer seu incalculável desembarque, os chilenos, que se acreditavam brancos (embora descendentes de povos indígenas de um lado e de espanhóis do outro, isto é, de europeus ibéricos misturados com árabes e judeus), não sabiam se aqueles migrantes qualificavam-se ou não como brancos. Por via das dúvidas, deixaram que entrassem.”

Capa do livro

Capa do livro

Reprodução

“Tornar-se Palestina”
• De Lina Meruane
• Tradução de Mariana Sanchez
• Prefácio de Milton Hatoum
• Relicário Edições
• 356 páginas
• R$ 69,90

Reprodução

“Sinais de nós”
• De Lina Meruane
• Tradução de Elisa Menezes
• Relicário Edições
• 76 páginas
• R$ 53,90

Milton Hatoum
Milton Hatoum Renato Parada/divulgação


“Gostaria de ter escrito este livro”

Milton Hatoum


“Não por acaso, a primeira edição de ‘Tornar-se Palestina’ atraiu muitos leitores brasileiros. Quando a li, fiquei fascinado pelas reflexões, revelações, indagações, pelos detalhes concretos da vida de uma escritora e professora expatriada, pelos cruzamentos e sinuosidades temporais e espaciais, pela costura histórica que entrelaça as observações e a experiência da viajante com análises de textos e documentários sobre a Palestina. E, não menos importante, pela finura de um estilo descarnado, sutilmente irônico, nada pomposo ou altissonante. Nesses ensaios, a capacidade de argumentar e de fazer sentir são inseparáveis.


Eles nos transmitem uma vibração emocional na dose certa, sem exagero, sem apelações vitimistas, sem autocomiseração: uma emoção que nos faz companhia, toca nossa sensibilidade e nos torna solidários, não apenas aos palestinos. Em tantas belíssimas passagens – “Um silêncio impermeável”, “A memória do ruído”, “Chave girando” –, a prosa se acerca da poesia, se enlaça à história e comove o leitor.


O martírio do povo palestino, a matança diuturna de crianças, jovens e adultos pelo Estado ocupante e por seus associados horrorizam o mundo. E todos – exceto as mentes doentias e cultoras da morte – sabem que o que está em jogo é a humanidade e seu bem comum: a liberdade.


Pensei, com uma ponta de inveja, que eu gostaria de ter escrito este livro, mas me resignei a ser um leitor e a indicá-lo com entusiasmo a amigos e conhecidos. Lembro que recebi várias mensagens que diziam: “Li o livro de Lina e me tornei Palestina”. Não serão outras as palavras dos leitores dessa bela e necessária reedição, cujos ensaios relacionam-se como vasos comunicantes e primam por sua coerência. O resultado é este livro escrito com arte, sabedoria e paixão, o que lhe confere um elevado valor literário e histórico.”

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