O escritor irlandês Lafcadio Hearn em vestes típicas japonesas: conexão entre Europa e Oriente -  (crédito: Reprodução)

O escritor irlandês Lafcadio Hearn em vestes típicas japonesas: conexão entre Europa e Oriente

crédito: Reprodução

Cristhiano Aguiar*

Especial para o EM

Em "Kwaidan: histórias de fantasmas e outros contos estranhos do Japão antigo" (Fósforo, 2023), do escritor irlandês Lafcadio Hearn, é possível encontrar, em pé de igualdade, a delicadeza e a violência. Fazem parte das imagens poéticas do livro tanto a singeleza do voo de uma borboleta, quanto a brutalidade de orelhas sendo arrancadas por forças sobrenaturais. É entre sangue, silêncio e poesia que brilham os belos contos desta obra-prima da literatura fantástica, sem dúvidas um dos melhores lançamentos de 2023.

Ao falarmos do contexto literário irlandês, nomes como James Joyce, Samuel Beckett ou Oscar Wilde vêm à mente. É pouco provável, contudo, que lembremos, ao menos de imediato, de Lafcadio Hearn (1850-1904). Como bem escreveu Sofia Nestrovski, que além de assinar a bela tradução de "Kwaidan", escreveu um excelente prefácio para o livro: “Hearn me parece ser o tipo de autor fadado a ser redescoberto e esquecido ciclicamente”. Concordo com Sofia. E desde já Hearn me fascina para além da obra que escreveu. Me agradam autoras e autores cuja consagração crítica é instável, cuja obra parece ser amada por um círculo apaixonado de leitores secretos.

Lafcadio Hearn teve uma vida tão ou mais interessante do que a sua literatura – vida marcada por viagens pelo mundo, pela orfandade, por um acidente que cegou um dos seus olhos, pela experiência marcante de ter vivido nos Estados Unidos e, nos anos finais de sua vida, no Japão. Homem múltiplo, Hearn é e não é da sua terra. Para além da origem irlandesa, sua ascendência grega (por parte materna), assim como as influências das vivências estadunidense e japonesa, foram importantes para definir tanto sua vida pessoal, quanto sua vida intelectual. É difícil afirmar “Hearn foi um irlandês” sem inserir nuances. Se é difícil situar o homem em um ponto biográfico definido, o mesmo se pode dizer sobre sua obra: ela parece fugidia e estranha demais para plena consagração.

E do que se trata "Kwaidan", provavelmente seu livro mais conhecido hoje em dia? Fruto do amor que seu autor tinha pela cultura japonesa, o livro reconta narrativas orais japonesas, boa parte permeadas por fantasmas e demônios. Completa o conjunto da edição da Fósforo três ensaios de Hearn sobre borboletas, mosquitos e formigas, respectivamente. Estes três ensaios, embora não sejam contos, podem ser lidos como literatura fantástica, também. Sobre a escrita do livro, um dado fascinante: consta que Hearn não tinha pleno domínio do japonês. Os contos de "Kwaidan" foram recontados por ele a partir do que lhe era recitado por sua esposa japonesa. Isto criou um sabor híbrido aos contos – nem totalmente europeus, nem plenamente nipônicos. Apesar de publicado em 1904, "Kwaidan" é um típico livro de contos fantásticos do século XIX, porém imbuído de uma autenticidade cultural no tocante ao seu lastro japonês.

Os fantasmas, monges com poderes mágicos, mortos-vivos e entidades presentes em "Kwaidan" são narrados em uma linguagem límpida e com belas imagens, várias delas nos remetendo à atitude contemplativa da poesia dos haicais. Situações recorrentes do fantástico são encontráveis aqui: travessias entre o reino dos humanos e dos seres sobrenaturais, objetos mágicos, maldições, trágicas interações entre humanos e seres etéreos e o preço a se pagar quando tentamos desafiar os limites da vida e da morte. Há uma frequente dimensão trágica nestas histórias, que nos remete às fábulas em sua condição primeva, antes de terem sido adocicadas pela moral e pelo puro entretenimento. "Kwaidan" mantém intacta a sabedoria das histórias imemoriais, aquelas que precisam nos lembrar de verdades duras sobre nossa existência. Verdades sobre o peso do tempo, por exemplo, ou sobre tabus que envolvem o sexo e os afetos.

Quando os contos do livro se propõem a ser assustadores, nos chamam atenção seus monstros, seja a silhueta, projetada na parede, de uma mulher morta, ou cabeças famintas rodopiando na escuridão. Mas nem só de milagres sobrenaturais se faz a escrita destas histórias, pois há bastante comentário social nelas. Um tema importante, que as perpassa, é o do conflito entre a realização de nossas vontades individuais, por um lado, e como tais vontades serão conciliadas com a rígida organização social do Japão, por outro. Dimensões econômicas, o estatuto do trabalho, a orfandade e a luta por sobrevivência, temas que tanto associamos ao realismo literário, principalmente do século XIX em diante, estão nas entrelinhas dos contos de Lafcadio Hearn.

Por fim, a quem se destina a leitura de "Kwaidan"? Não creio que somente aos convertidos como eu, ou seja, àqueles que amam literatura fantástica, fábulas e cultura japonesa. Me permitam sugerir o tocante livro de Hearn mesmo que a sua imaginação soe por demais extravagante para você, que lê esta resenha. É que há vida pulsante nessas página, tecida com sabedoria e com lirismo.

*Autor de livros como “Gótico nordestino”, Cristhiano Aguiar é escritor e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie


KWAIDAN: HISTÓRIAS DE FANTASMAS E OUTROS CONTOS ESTRANHOS DO JAPÃO ANTIGO
Lafcadio Hearn
Editora Fósforo
240 páginas
R$ 72,90