Carola Matarazzo
Diretora executiva do Movimento Bem Maior

 

O que é necessário para sacudir o sistema? Na filantropia, a pesquisa "Periferias e Filantropia – As barreiras de acesso aos recursos no Brasil", que esclarece a distribuição do investimento social privado, realizada pela Iniciativa Pipa, produziu este ano um dos principais impactos que buscamos no campo social: o de questionar as estruturas e provocar ações que já podem ser implementadas em 2024. De outra forma, não teremos entendido a mensagem.

Ao refletir sobre o panorama do investimento social privado para 2024, visualizo uma mudança de paradigmas e na transferência de poder, um processo que se materializa ao elaborarmos espaços de produção de conhecimento capazes de provocar mudanças estruturais. O incômodo torna-se, assim, um catalisador essencial para a transformação que almejamos.

Essa urgência ganha contornos mais vívidos quando confrontamos o retorno de desafios sociais aparentemente superados, como a fome e o aprofundamento de desigualdades históricas. Há a necessidade de nos voltarmos à razão fundamental de tudo, as pessoas, e dedicarmos um olhar para os valores que nos compõem como sociedade.

A criação do Pacto Contra a Fome em 2023, do qual sou cofundadora, e a ampliação das suas atividades para o próximo ano são um exemplo de um esforço concentrado em ações coletivas. O Pacto Contra a Fome é um movimento suprapartidário, multissetorial e foi criado para combater a fome e o desperdício de alimentos no Brasil. Nossa meta é zerar a fome no país em 2030 e, em 2040, que toda a população brasileira esteja bem alimentada.

Este pacto é um compromisso sólido para enfrentar as raízes profundas da fome, abordando seus sintomas e causas subjacentes. A meta de erradicar a fome, promover uma mudança estrutural e duradoura em nosso tecido social é ambiciosa, mas bem possível. Logo, a reconstrução e o fortalecimento dos direitos sociais básicos – como o mais básico deles, a comida no prato – demandam ainda uma mudança paradigmática: a descentralização do poder e a promoção da autonomia nas comunidades.

Isso transcende ações emergenciais e assistenciais. Para isso, precisamos estar preparados para direcionar ações que produzam impacto estrutural. No trabalho do Movimento Bem Maior, essa abordagem tem guiado as nossas escolhas de filantropia estratégica. Em 2023, direcionamos um esforço considerável para ampliar a frente de investimento que chamamos de Impulso, voltada ao desenvolvimento do ecossistema filantrópico, da qual partiu o apoio à Iniciativa Pipa. Na mesma linha, buscamos apoiar organizações de fomento à filantropia comunitária entendendo que esse é um fator multiplicador de transformação, como é o caso do Fundo Agbara, primeiro fundo para mulheres negras criado no Brasil.

Apoiar organizações que pavimentam o setor, facilitando o acesso a informações, dados e pesquisas atualizadas, escancara as portas da compreensão do momento atual e contribui para a construção de uma narrativa transformadora do cenário que vivemos. Essa é nossa aposta para uma abordagem que, além de criar um ambiente plural e acessível, também se revela como um agente catalisador, capaz de redefinir paradigmas e fortalecer a confiança no poder transformador da filantropia.

Destacamos a importância da construção de conhecimento sólido e fundamentos robustos no campo como um caminho para práticas mais eficazes e sustentáveis a longo prazo. Isso significa principalmente enxergar nas favelas, nas comunidades ribeirinhas, nos povos tradicionais e tantas outras “periferias” como detentores e protagonistas desse conhecimento. Esse investimento direto visa sair da tradicional mitigação de problemas imediatos para o estímulo ao desenvolvimento sustentável e a autonomia das comunidades de dentro para fora.

O diálogo também com o poder público precisa ter ainda mais espaço. Um trabalho de advocacy que havia se tornado restrito nos últimos anos têm voltado a fazer parte da agenda das Organizações da Sociedade Civil (OSCs) com a participação em mesas, grupos de trabalho, fóruns e outros espaços importantes de incidência junto a governos e instâncias deliberativas.

Se buscarmos agir em conjunto para a mudança de sistemas, essa interface é fundamental no desenho de políticas públicas que atendam às gigantes demandas sociais. A consolidação de valores fundamentais centrados nas pessoas é um chamado à ação de uma jornada contínua em direção a um futuro sustentável e inclusivo, onde a filantropia estratégica desempenha um papel central no fortalecimento da democracia construindo sociedades mais justas e resilientes.