Por que as águas nos oásis do sertão mineiro estão sob risco de colapso?
Queda na disponibilidade hídrica, com redução de até 50% na vazão de rios, é um dos alertas de ação do MP Federal que cita denúncias do EM
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A ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal para conter a degradação retratada pela série “Veredas mortas”, publicada pelo Estado de Minas em julho de 2024, afirma que o Parque Nacional Grande Sertão Veredas (e o cerrado) estão “sofrendo, com efeito, queda significativa na disponibilidade hídrica, com redução de até 50% nas vazões de rios e na umidade superficial nas veredas”. Aponta ainda para uma sobrecarga hídrica, já que o total de outorgas emitidas para poços tubulares no Sistema Aquífero Urucuia (SAU) já atinge 137,41 metros cúbicos por segundo, volume próximo do colapso.
São situações que abrangem o cerrado como um todo, como mostrou a série “Veredas mortas”, e não somente o entorno do parque. A escassez de água é um fator central na degradação das veredas, como ocorre na Vereda São José, em Três Marias, já no sertão mineiro.
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Há 70 anos, corria dali um riacho caudaloso, com mais de quatro quilômetros de extensão. Suas águas, nas cabeceiras da vereda, impressionaram Guimarães Rosa, que a descreveu como “a mais bela”. Agora, esse volume está retido há anos em um grande barramento próximo, represado para irrigar plantações em pivôs centrais, afogando palmeiras de buriti pegas na inundação. Na época de estiagem, nem uma gota sobra para matar a sede da vereda, condenando-a a definhar aos poucos.
Outro exemplo da crise hídrica retratada na série e alvo da ação do MP Federal é a situação do Córrego do Batistério, em Pirapora, na mesma região, onde os personagens Riobaldo e Diadorim se reencontram no romance de Guimarães Rosa, quando entram na vida de jagunços. Sete décadas depois da obra, o trecho final desse afluente do Rio das Velhas foi encontrado seco pela equipe de reportagem, seu leito com abundância apenas de pedras e poeira.
Desmatamento e uso excessivo de água
O objeto da ação da Procuradoria da República em Minas é conter o desequilíbrio causado pelas atividades econômicas em uma área que tem sido “severamente afetada pela escassez de água em decorrência do seu uso em excesso e da supressão de vegetação nativa nos seus arredores”.
Verificou-se, destaca a Procuradoria, um “crescimento exponencial da atividade agrícola de larga escala em seu entorno, com a supressão de vegetação nativa e, mais recentemente, uso intensivo de água para irrigação”. A perda de veredas pode ter relação “forte com o tipo de atividade de agricultura extensiva que vem se expandindo no entorno imediato, com amplas áreas de vegetação nativa suprimidas”, afirma a ação.
O desmatamento para abertura ou ampliação de plantações é um dos grandes problemas devido à demarcação insuficiente das veredas, como mostrou a série de reportagens do EM. “As veredas estão invisibilizadas. Não há um mapeamento seguro. Elas só 'existem' (legalmente) quando o produtor – muitas vezes quem as desmata – contrata um profissional para declarar a sua existência, mas isso dificilmente é conferido”, criticou na época a promotora de Justiça Carolina Frare Lameirinha, coordenadora regional das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente em Minas.
A série também mostrou que o solo do cerrado exposto pelo desmatamento e a queda na disponibilidade de água estão intimamente ligados, devido ao fato de as áreas desmatadas serem pontos de recarga hídrica muitas vezes transformados em locais de erosão. “A água cai, por mais que se possa adotar técnicas preventivas, como curva de nível e as próprias barraginhas; ainda assim, parte substantiva desse solo vai ser lavado e assorear as veredas, as nascentes, os cursos d'água”, disse à equipe de reportagem o ambientalista Almir Paraca.
Danos são ainda mais extensos
Outros danos não inteiramente contemplados pelos pedidos da ação do Ministério Público Federal foram expostos pela série de reportagens “Veredas mortas”, como o alto nível de poluição dos rios na região, o que afeta diretamente a saúde humana e o ecossistema.
O Rio das Velhas, por exemplo, apresentou “2.091 violações (50,8%)” em 4.112 amostras de água entre 2019 e 2022, segundo o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam). Um grande perigo é a alta concentração de arsênio, com 42 amostras, substância à qual a exposição prolongada pode causar doenças neurológicas, como distúrbios do movimento, tremores, fraqueza muscular e dificuldade de fala.
Os efeitos das monoculturas e da queima do carvão são outro impacto evidente sobre veredas e cerrado no sertão de Guimarães Rosa. “A implantação de eucaliptais suprimiu, matou efetivamente, muitos cursos d’água e muitas veredas aqui no Norte de Minas. Mas muitas, mesmo”, disse à equipe de reportagem o ambientalista Almir Paraca.
A pesquisadora Flávia Galizoni, da Universidade Federal de Minas Gerais, relata um caso em que o Rio dos Cochos foi “morto numa noite, porque uma chuva levou a terra gradeada do desmatamento para seu leito, matando o curso d'água e afetando diretamente o abastecimento humano e produtivo de seis comunidades rurais em Cônego Marinho, no Norte de Minas”.
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E uma nova ameaça surge com a expansão das usinas fotovoltaicas, megaempreendimentos de geração identificados como uma pressão recente e preocupante sobre o cerrado. Peterson Almeida, chefe do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, reforça o alerta sobre o risco do momento: “É o novo eucalipto que está chegando”. Uma das preocupações é que “a reflexão dos raios solares pode intensificar o aquecimento e as mudanças climáticas” em uma região delicada e que já enfrenta pressão extrema.