Dia do Orgulho Autista: desinformação cresceu 15.000%, diz associação
Falsas promessas dificultam o tratamento de crianças autistas, agravando o estigma e a falta de apoio às famílias na busca por cuidados adequados
compartilhe
Siga noNo Dia do Orgulho Autista, em 18 de junho, um estudo inédito do Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV), em parceria com a Associação Autistas Brasil, revela um cenário alarmante: a circulação de fake news sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA) cresceu 15.000% em aplicativos de mensagens e redes sociais entre 2019 e 2024. Quase metade desse conteúdo falso (46%) circula em grupos brasileiros, o maior volume da América Latina.
Para entender a dimensão desse problema, os pesquisadores analisaram mais de 58 milhões de mensagens em grupos públicos do Telegram. A coleta foi feita com uma metodologia cuidadosa, que respeitou a privacidade dos usuários, focando em palavras-chave como “autismo”, “cura” e “vacina”. Esse processo permitiu identificar padrões que expõem como boatos e falsas promessas são disseminados em larga escala.
Leia Mais
Guilherme de Almeida, presidente da Associação Autistas Brasil, explica: “A gente analisou grupos abertos no Telegram, sem invadir privacidade. Usamos palavras-chave específicas para identificar a origem e o padrão das mensagens. O crescimento de 15.000% na desinformação vem de uma sequência sempre parecida: primeiro criam um boato absurdo, como ‘vacina causa autismo’, depois oferecem uma ‘cura milagrosa’, e finalmente alguém tenta vender um produto caro”.
O levantamento revela que a maioria dessas mensagens falsas tem um objetivo financeiro claro. Guilherme alerta que as famílias acabam presas numa bolha de desinformação. “Quando a família cai nesse golpe, o algoritmo passa a recomendar só conteúdo falso, criando uma bolha de desinformação muito difícil de quebrar.”
Entre as falsas informações mais comuns estão teorias que culpam a mãe pelo autismo, a indicação de dietas radicais e o uso de substâncias tóxicas como MMS (composto à base de cloro) e até água sanitária como “tratamento”. Ele reforça: “A narrativa é sempre a mesma: ‘Seu filho está assim porque você fez X, mas se pagar Y, ele melhora’. Isso é criminoso. Autismo não é doença e não tem cura — o que existe são terapias individualizadas para desenvolvimento”.
Em Minas Gerais, essa realidade se repete. A Fundação Dom Bosco, com 64 anos de atuação em Belo Horizonte, recebe muitas famílias desorientadas, envolvidas em informações distorcidas sobre o autismo. Segundo o superintendente Elvimar Peixoto, a raiz do problema está na falta de uma avaliação neuropsicológica estruturada no sistema público de saúde.
Essa avaliação é fundamental para identificar precocemente o TEA e outros transtornos do neurodesenvolvimento. Sem ela, o diagnóstico ocorre tardiamente, geralmente quando a criança já enfrenta dificuldades escolares, sociais e comportamentais. A demora compromete o desenvolvimento infantil e gera insegurança nas famílias, que acabam recorrendo a fontes nem sempre confiáveis.
Além disso, o custo elevado das avaliações dificulta o acesso de muitas famílias, que ficam sem laudos importantes para garantir direitos, como benefícios sociais e suporte escolar. Atualmente, a Fundação Dom Bosco atende cerca de 500 crianças em duas unidades na capital, a maioria encaminhada pelo SUS após o surgimento das dificuldades. Elvimar destaca que essa perda de tempo adia intervenções eficazes, prejudicando o progresso da criança e dificultando a compreensão da família sobre o transtorno.
Avanço das fake news
O professor Sampaio, especialista no tema, alerta que o aumento no diagnóstico do autismo também abriu espaço para o crescimento da desinformação e das falsas promessas, que colocam em risco a saúde das crianças. Entre os conteúdos mais perigosos estão os que indicam “curas milagrosas” com substâncias tóxicas, como água sanitária, dietas restritivas e tratamentos sem respaldo científico. Essas informações atrasam o acesso a terapias verdadeiras e podem causar danos físicos e mentais graves.
Ele ressalta que a falta de apoio e informações confiáveis do Estado deixa as famílias vulneráveis a essas fake news, frequentemente propagadas por pessoas próximas, o que dificulta a identificação do erro. Para o professor, a Justiça deve agir com rigor contra quem explora a dor das famílias com falsas curas.
Pressão por terapias intensivas e exploração financeira
Guilherme chama atenção para a pressão excessiva por tratamentos que chegam a 40 horas semanais de terapia, uma carga horária equivalente à jornada de trabalho de um adulto. Ele alerta que essa prática pode negar à criança direitos fundamentais, como acesso à educação, lazer e brincadeiras.
Segundo ele, o diagnóstico de autismo é feito por exclusão, mas muitas vezes, em uma única consulta médica, já é indicado que a criança precisa dessas 40 horas de terapia e de um profissional de apoio na escola. Para Guilherme, impor essa rotina pesada a uma criança é negar seu direito à educação, ao lazer, ao esporte e ao brincar, ou seja, negar a própria infância sob o pretexto de que ela precisa ser “tratada”.
Além disso, essa terapia tem um custo altíssimo. Muitas famílias ouvem que, se não seguirem esse tratamento intensivo, a criança “nunca vai falar, nunca vai trabalhar, nunca vai namorar”, o que gera uma ansiedade enorme. E ainda são orientadas a tentar processar o Estado, o município ou o plano de saúde para cobrir os custos. Guilherme destaca que quem realmente se beneficia são as clínicas, principalmente as de ABA, que exigem essas horas excessivas de terapia.
Ele também revela que há registros de famílias prejudicadas, embora detalhes não possam ser divulgados por questões éticas e pela LGPD. Em Minas Gerais, por exemplo, existem casos de “mutirões de diagnóstico” em comunidades carentes, onde clínicas fazem diagnósticos em massa e depois cobram tratamentos caríssimos dos planos de saúde ou do poder público. Já houve pedidos de reembolso de até R$ 120 mil por mês para uma única criança, o que Guilherme classifica como extorsão.
Plataformas digitais e a necessidade de regulamentação
Grande parte da desinformação circula em plataformas como Telegram e WhatsApp, que desde 2016 não possuem mecanismos eficazes de verificação de fatos, permitindo a prosperidade de conteúdos fraudulentos. Guilherme denuncia que as big techs lucram com o engajamento gerado pelas fake news, mas não assumem responsabilidade.
“As big techs sabem que a desinformação gera engajamento e lucro, mas não agem. O Telegram, por exemplo, virou um antro de grupos que espalham mentiras. E quando a gente denuncia, não há resposta. Precisamos de leis que obriguem essas empresas a remover conteúdo perigoso, como já acontece com discurso de ódio e fake news políticas.”
Nesse contexto, a regulamentação do Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como “PL das Fake News”, é vista como fundamental para responsabilizar as plataformas pela circulação de informações fraudulentas, incluindo proteção específica para pessoas com deficiência e neurodiversidade. A proposta não visa censura, mas garantir acesso a informações seguras e validadas.
Caminhos para acolhimento e inclusão
Diante desses desafios, a Fundação Dom Bosco implementou medidas para facilitar o acesso ao diagnóstico e às intervenções adequadas. Oferece avaliações neuropsicológicas com valor social e atendimento por equipe multidisciplinar, composta por psicólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, médicos e psiquiatras.
O acolhimento começa com triagem socioeconômica e orientação sobre direitos, permitindo às famílias encontrar apoio integrado. Para Elvimar, além de combater a desinformação, é fundamental ajudar as famílias no processo de aceitação do diagnóstico. Quanto mais precoce essa aceitação, mais rápido se constrói um caminho para autonomia, desenvolvimento e qualidade de vida da criança.
O professor Sampaio reforça a importância de uma mudança cultural na inclusão: “A inclusão não deve significar que a pessoa autista precise se adaptar ao ambiente, mas que o ambiente se adapte para recebê-la. Informar de forma simples e acessível sobre o autismo pode salvar famílias das armadilhas da desinformação e ajudar a construir uma sociedade mais justa e acolhedora.”
Relato de uma mãe: o impacto da desinformação na vida real
Natália Tudeia, mãe de Heitor, de 6 anos, que frequenta a Fundação Dom Bosco há um ano, conhece de perto os desafios enfrentados pelas famílias que recebem o diagnóstico de autismo. Para ela, o momento em que descobriu o transtorno foi como se o mundo desabasse.
“Quando recebi o diagnóstico, tive que me recompor rapidamente para buscar a intervenção certa para o meu filho”, conta Natália. A busca por informações confiáveis, porém, não foi fácil. “Cada pessoa falava uma coisa diferente sobre o Transtorno do Espectro Autista. Na internet, então, o cenário é volátil , ouvi gente dizendo que meu filho estava ‘curado’ só porque passou a se alimentar sem glúten, sem ultraprocessados e tomando chás. Isso é uma tremenda bobagem, porque autismo não tem cura.”
Apesar de toda essa desinformação, Natália jamais seguiu orientações equivocadas. Ela percebe, no entanto, que o estigma e as ideias erradas ainda são muito presentes. “Muita gente acredita que o autismo é falta de coragem ou até castigo. E várias mães têm dificuldade em aceitar o diagnóstico. Muitas me procuram, confusas, tentando entender o que realmente precisa ser feito.”
Natália observa que algumas famílias acabam negando a necessidade das terapias intensivas recomendadas ,que podem chegar a 40 horas semanais, e acabam optando por atendimentos esporádicos, como uma sessão a cada 15 dias. “Nessa situação, não há avanço possível”, alerta.O relato de Natália revela a urgência de campanhas de informação e de políticas públicas que orientem e acolham as famílias, para que elas encontrem apoio seguro e confiável nessa jornada tão delicada.
Contexto histórico e social
O Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) reúne diferentes desordens do desenvolvimento neurológico, presentes desde o nascimento ou início da infância, como o autismo infantil precoce, a Síndrome de Asperger e outras variantes. Conforme o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), o TEA se manifesta por dificuldades na comunicação e na interação social, além de comportamentos repetitivos e interesses restritos, que variam de intensidade entre os indivíduos.
Embora o diagnóstico seja mais comum em crianças, o autismo é uma condição permanente que acompanha a pessoa ao longo da vida. As causas ainda não são totalmente compreendidas, mas estudos indicam que fatores genéticos e ambientais contribuem de forma equilibrada para o desenvolvimento do transtorno. Enquanto mutações genéticas e herança familiar explicam cerca de metade dos casos, elementos como estresse, infecções e complicações na gestação também têm papel importante.
O dia 18 de junho marca o Dia do Orgulho Autista, uma data criada há duas décadas nos Estados Unidos, quando um grupo de pessoas diagnosticadas com a antiga Síndrome de Asperger decidiu construir um movimento de valorização da neurodiversidade. Desde então, o dia se tornou uma bandeira mundial de conscientização, luta por direitos e combate ao preconceito.
No Brasil, essa história se entrelaça com a trajetória do Movimento Orgulho Autista Brasil (Moab), que também completa 20 anos de atuação. O grupo é referência na defesa dos direitos de pessoas autistas e suas famílias, com forte presença no Congresso Nacional e nas discussões sobre políticas públicas.
O Censo de 2022, que pela primeira vez incluiu dados específicos sobre o autismo no país, revelou que o Brasil tem hoje cerca de 2,4 milhões de pessoas diagnosticadas com TEA. A maior parte está concentrada na região Sudeste e é majoritariamente do sexo biológico masculino. Embora tenha havido crescimento na inclusão de autistas na Educação Básica, o percentual de quem avança para o Ensino Médio e Superior ainda é muito pequeno.
Mais do que uma lembrança, o Dia do Orgulho Autista é um chamado para que a sociedade reconheça que o autismo não é uma doença a ser curada, mas uma característica da neurodiversidade humana. É também um alerta para a necessidade urgente de combater a desinformação, construir redes de apoio, garantir acesso à saúde, à educação e aos direitos fundamentais, e enfrentar os desafios impostos pelo preconceito, pela desinformação e pela negligência das políticas públicas.