Tecnologia ancestral

Pesquisa com macacos em Minas pode 'chacoalhar' arqueologia, diz cientista

Pesquisador mineiro participante da pesquisa que propõe nova explicação sobre origens das ferramentas de pedra lascada avalia que ideia cria desafio para a ciê

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A partir de observação de macacos-prego em Minas Gerais, um grupo de cientistas fez uma descoberta que pode mudar o conceito sobre como foi iniciado o uso da pedra lascada como ferramenta pelos ancestrais da espécie humana, há 3,3 milhões de anos, indicando novos rumos para arqueologia. O estudo aponta que, provavelmente, a pedra lascada surgiu de maneira “acidental”, sem que fosse produzida intencionalmente, como se considera hoje.


Os pesquisadores documentaram o comportamento de um grupo de macacos, da espécie Sapajus xanthosternos (macaco-prego-do-peito-amarelo) em uma área de mata seca de aproximadamente 1 mil hectares, na Fazenda Matos, uma propriedade particular na região de Santa Rosa de Lima, no município de Montes Claros, no Norte de Minas. Eles verificaram que os primatas apresentam um nível evolutivo semelhante ao que atingiram os ancestrais do Homo sapiens há 3,3 milhões de anos, na idade da pedra lascada (período paleolítico).


A equipe de pesquisadores documentou o comportamento de alguns desses primatas na área de mata e mostrou que eles são capazes de produzir lascas de pedra, a forma mais rudimentar de ferramenta que hominídeos usavam na África, muito antes do surgimento do homem moderno.


Os cientistas descobriram que os primatas não lascam a pedra intencionalmente. As lascas são subproduto de um comportamento já conhecido de algumas espécies de macacos-prego: o de usar pedras para quebrar sementes e frutos secos. Ao fazerem isso, eles acabam “fabricando” as lascas de forma não proposital, ao acaso.


O trabalho foi liderado pelos cientistas Tomos Proffitt e Lydia Luncz, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, da Alemanha, e contou com participação dos pesquisadores Waldney Martins e Paula Medeiros, da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). A descoberta foi revelada em estudo publicado na revista “PNAS”, da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos.


“Um caminho importante para a compreensão das origens da tecnologia dos primeiros hominídeos é o registro de ferramentas de pedra das populações contemporâneas de primatas. Nossa pesquisa concentra-se no registro de ferramentas de pedra de macacos-prego-do-peito-amarelo (Sapajus xanthosternos) da Fazenda Matos, no Brasil”, informam os pesquisadores.


A força do acaso

O trabalho mostra que a espécie, por meio de atividades habituais de quebra de nozes, “produz um registro lítico fragmentado diversificado, incluindo a produção não intencional de flocos de arestas vivas, como aqueles comumente associados à tecnologia dos primeiros hominídeos”, afirmam os responsáveis pela pesquisa.


“O que estamos revelando, hoje, ao observar os macacos quebrando os frutos da área da Fazenda Matos, é o que os hominídeos faziam há 3 milhões de anos, que a pedra lascada foi feita de maneira não intencional, fabricada ao acaso. Ou seja: os hominídeos, provavelmente, não pegavam uma pedra e a cortavam até ela se transformar em um objeto afiado, como era pensado anteriormente”, afirma o professor e biólogo Waldney Martins, coordenador do Laboratório de Ecologia e Conservação de Mamíferos (Lecom) da Unimontes.


“Digamos que se estivéssemos, hoje, no período dos hominídeos, a gente não consideraria que a pedra lascada foi um invento, mas sim um achado. É como se, por exemplo, existisse um monte de facas no chão. E o indivíduo pega uma faca já pronta e começa a usá-la. Não foi ele que inventou, mas só achou a ferramenta”, ilustra o pesquisador.


Equipe internacional

Martins explica que a pesquisa sobre evolução dos macacos é um estudo de longo prazo. Ele já trabalha com o tema há cerca de oito anos, observando o comportamento dos macacos-prego na Fazenda Matos, distante 59 quilômetros da sede urbana de Montes Claros. O professor mineiro entrou em contato com o cientista inglês Tomos Proffit e a pesquisadora alemã Lydia Luncz, que fazem estudos sobre uso de ferramentas por primatas também na Costa do Marfim (com os chimpanzés) e primatas da espécie Macaca fascicularies, na Tailândia.


A partir daí, os estudiosos somaram esforços, e em maio de 2023, os cientistas estrangeiros vieram ao Brasil para a documentação da evolução da espécie macaco-prego-do-peito-amarelo no Norte de Minas, o que resultou na descoberta publicada na revista científica americana.

Um dos co-autores do artigo “Produção de lascas: um subproduto universal da percussão de pedras por primatas”, o professor Waldney Martins avalia que a descoberta feita a partir da observação de macacos-prego-do-peito-amarelo no Norte de Minas promete dar uma “chacoalhada” na ciência e criar desafios para os arqueólogos sobre o comportamento dos ancestrais do homem moderno, ao indicar que “as pedras lascadas formadas pelos hominídeos no passado, provavelmente, foram fabricadas ao acaso”, e não intencionalmente, como se acredita hoje.


“O que muda com o estudo é que dá uma 'bagunçada' na arqueologia. Até então, nós dizíamos, nós todos, seres humanos, que o período da pedra lascada surgiu em função de um planejamento tecnológico, digamos assim. Mas, agora, o estudo mostra que a ferramenta da pedra lascada surgiu por acaso. Os hominídeos descobriram a pedra lascada, provavelmente, por acaso, pela necessidade do uso da pedra para se alimentar. Então, os arqueólogos terão que provar isso. Eles terão que entender a descoberta ou tentar provar o contrário”, diz o pesquisador.


“Mas é assim que funciona a ciência: se você tem uma descoberta e a outra pessoa não concorda com aquilo, ela vai ter que provar. Ou seja: vai ter que fazer mais estudos para provar que aquela hipótese que foi levantada pode ser refutada ou não”, conclui Martins.


O pesquisador mineiro Waldney Martins salienta que seus estudos buscam tentar esclarecer porque somente os macacos-prego-do-peito-amarelo que habitam a mata seca adotam o uso de pedras para quebrar sementes. “Ou seja, se é algo relativo à oportunidade (uso mais frequente do solo), ou se é relativo à escassez de alimento”, afirma, lembrando também que a espécie está ameaçada de extinção.


“A evolução da tecnologia de ferramentas de pedra tem marco significativo no desenvolvimento dos hominídeos, permitindo que os primeiros humanos manipulassem seus ambientes. A evidência mais antiga conhecida, datada de 3,3 milhões de anos, indica uma combinação de atividades de produção de lascas e percussão. Estudar a assinatura arqueológica do uso de ferramentas de pedra percussivas em primatas vivos fornece um análogo potencial à origem da tecnologia de lascas de pedra na linhagem dos hominídeos”, descrevem os pesquisadores no artigo veiculado na revista “PNAS”, da Academia Nacional de Ciências dos EUA


“Nossa análise desse registro demonstra muitas características arqueológicas previamente associadas à produção intencional de lascas. Isso inclui pedras de martelo com danos percussivos substanciais e uma variedade de peças lascadas e destacadas. Análises comparativas com outros conjuntos de primatas e hominídeos revelam que a produção não intencional de lascas é um componente universal dos comportamentos percussivos de martelos e bigornas de pedra, sugerindo que comportamentos semelhantes dos primeiros hominídeos podem ter levado à tecnologia de lascas de pedra e que esse registro pode ter sido altamente variável”, relatam os cientistas.


Primeiras ferramentas

“O desenvolvimento da tecnologia de ferramentas de pedra representa um momento crucial na evolução humana, permitindo aos hominídeos modificar os seus ambientes para além das suas capacidades físicas”, afirmam os cientistas responsáveis pelo estudo sobre o início do uso da pedra lascada como ferramenta, a partir da observação do comportamento de macacos no Norte de Minas Gerais.


“Compreender as origens dessa tecnologia é fundamental para desvendar a evolução do comportamento e da cultura humana”, destacam os pesquisadores no artigo publicado na revista PNAS, com o título “Produção de lascas: um subproduto universal da percussão de pedras por primatas”.


Passeio pela história

Os pesquisadores também fazem referência ao uso das ferramentas pelos nossos ancestrais. “Essas tecnologias são seguidas pelo Acheuliano (cultura do período paleolítico), um tecnocomplexo caracterizado por grandes ferramentas de corte, grande produção de lascas e um aumento notável na habilidade de lascamento tipicamente associado ao Homo ergaster/erectus” (espécie ancestral de hominídeo que viveu em um intervalo que varia entre há cerca 1,8 milhão de anos e de 100 mil a 200 mil anos, segundo a arqueologia).


“O surgimento da produção de lascas de pedra pode ter se desenvolvido a partir de uma cultura de percussão envolvendo ferramentas de pedra, semelhante aos comportamentos observados nos primatas existentes. Os hominídeos do Plioceno e do Mioceno provavelmente possuíam a capacidade de usar tais ferramentas levando alguns a sugerir que o uso de ferramentas em hominídeos pode se estender até o último ancestral comum dos chimpanzés e hominídeos, a aproximadamente 6 a 8 milhões de anos”, relatam os autores do estudo científico.

A geografia da pedra lascada

No artigo publicado na revista científica americana, os responsáveis pelo experimento lembram que “a evidência mais antiga da tecnologia dos hominídeos, datada de 3,3 milhões de anos, é a do Quênia. Essa tecnologia apresenta grandes núcleos e lascas que retêm evidências de atividades percussivas e de lascamento. Além disso, ossos marcados com cortes da Etiópia, datados de 3,34 milhões de anos, sugerem que lascas de pontas afiadas eram usados para atividades de 'açougue' (corte de carne) durante esse período”.


No trabalho conjunto de pesquisadores da Alemanha e do Brasil, os cientistas fizeram comparações entre os artefatos produzidos “involuntariamente” pelos chimpanzés na Costa do Marfim, pelos primatas da espécie Macaca fascicularis, na Tailândia; pelos macacos-prego na Fazenda Matos, no Norte de Minas.


“Relatos anedóticos indicaram que os macacos-prego (Sapajus xanthosternos) no Brasil também usam ferramentas de pedra para quebrar nozes. Aqui, relatamos a primeira montagem de ferramentas de pedra para quebrar nozes de uma população selvagem de macacos-prego na Fazenda Matos”, escrevem os estudiosos.


“Comparamos diretamente a assembleia com a assinatura material dos macacos-de- cauda-longa na Tailândia. A semelhança da matéria-prima permite-nos explorar se o mesmo comportamento realizado por espécies que ocupam ambientes diferentes e separadas por milhões de anos de divergência evolutiva produz um registro material semelhante. Combinado com evidências de outros conjuntos líticos de lascas de primatas modernos, agora está claro que a produção não intencional de lascas de arestas vivas é uma assinatura universal do uso de ferramentas de pedra percussiva”, relatam.


Os cientistas também ressaltam a relação entre a tecnologia das lascas de pedra e a evolução das espécies de primatas. “O surgimento da tecnologia de lascas de pedra na linhagem dos hominídeos pode estar ligado a múltiplos exemplos de evolução convergente com os primeiros conjuntos arqueológicos atribuídos a pelo menos quatro espécies diferentes de hominídeos”, registra o estudo.


“Comparando as assinaturas materiais de macacos-prego na Fazenda Matos e macacos-de-cauda-longa na Baía de Lobi, no Parque Nacional de Phang Nga (Tailândia), demonstramos o registro material de comportamentos semelhantes realizados por duas espécies separadas por diferenças ambientais significativas e milhões de anos de evolução compartilham semelhanças tanto na composição da assembleia quanto nas semelhanças tecnológicas”, relatam os pesquisadores.


O grupo de cientista salienta que as pedras lascadas podem ser “reaproveitadas pelos macacos-prego como martelo, o que, antes foi observado somente em chimpanzés e nos hominídeos. “Apesar de ser um caso singular, a descoberta de uma peça destacada com remoções secundárias de lascas, na Fazenda Matos, indica que em determinados cenários, devido às suas maiores dimensões, as lascas serão reaproveitadas como martelos. Isto pode levar à criação inadvertida de um tipo de artefato (ferramenta retocada) consistentemente ligado à produção deliberada de ferramentas no registro arqueológico dos hominídeos”, registram.


A presença desse artefato no conjunto da Fazenda Matos, registraram os pesquisadores, é a única ocorrência relatada de uma espécie de macaco produzindo e utilizando uma ferramenta de pedra, em vez de apenas selecionar uma pedra inalterada para uso. “Anteriormente, tal comportamento só havia sido observado em chimpanzés e hominídeos”, constata o artigo científico.


Câmeras especiais

A observação dos macacos-prego na área de mata da Fazenda Matos, no município de Montes Claros, no Norte de Minas, foi feita com o uso de oito câmeras especiais, que funcionam acionadas por movimento e calor. “Como os macacos-prego da Fazenda Matos não estão habituados a observadores humanos, observações comportamentais diretas não são possíveis. Todo o registro do comportamento foi realizado usando armadilhas fotográficas remotas (Bushnell), localizadas em locais conhecidos de quebra de nozes”, explicam os cientistas.


“As câmeras foram colocadas voltadas para afloramentos rochosos naturais que anteriormente eram usados como bigornas para quebrar nozes. Imagens capturadas foram usadas para descrever os padrões comportamentais de quebra de nozes”, informam. O estudo abrangeu locais onde grupos de macacos-prego fazem a quebra de nozes com o uso da ferramenta de pedra.


“Os macacos-prego da Fazenda Matos quebram nozes em posição bípede ereta, segurando um martelo com as duas mãos. Para golpear, eles se estendem até a altura total, elevando a pedra até o nível da cabeça e, em seguida, derrubando-a com força sobre a porca em um movimento descontrolado. Ocasionalmente, eles saltam ligeiramente durante o movimento ascendente, possivelmente para aumentar o impulso”, detalham os estudiosos. 

Espécie ameaçada

Os autores do estudo lembram que os macacos-prego-de-peito-amarelo (Sapajus xanthosternos) – cujo comportamento pode mudar a compreensão do uso de ferramentas de pedra pelos primeiros hominídeos – são classificados como “criticamente ameaçados”, de acordo com a Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN). Anteriormente considerados endêmicos da Mata Atlântica do Brasil, agora são conhecidos por habitar a caatinga e biomas de transição, particularmente em regiões de floresta seca, confinadas a terrenos montanhosos e montanhosos com florestas. A distribuição geográfica da espécie é delineada pelo Rio São Francisco, ao Norte e Oeste, pelo Rio Jequitinhonha, ao Sul, e pelo Oceano Atlântico, a Leste.

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