Sob sol escaldante, Pedreiro Gilmar Barreto, de 50 anos, trabalha com roupas que cobrem braços e pernas, óculos escuros e protetor solar:

Sob sol escaldante, Pedreiro Gilmar Barreto, de 50 anos, trabalha com roupas que cobrem braços e pernas, óculos escuros e protetor solar: "chega a doer"

crédito: Sérgio Vasconcelos/Esp. EM

A onda de calor que castigou boa parte do país nos últimos dias colocou holofotes sobre Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, onde os 34,29 mil habitantes penaram para enfrentar a temperatura mais alta da história das medições no país. O recorde nacional ocorreu há uma semana, no domingo (19/11), quando os termômetros bateram em 44,8°C, marca que superou a máxima anterior, de 44,7°C, registrada em Bom Jesus, no Piauí, em 21 de novembro de 2005.

A “fervura” castigou a população, apesar de acostumada às altas temperaturas da região. Como consequência, as vendas de ventiladores dispararam, as de sorvete ainda mais. Roupas de manga, mesmo sob o sol escaldante, começaram a ser adotadas como forma de proteção, em uma cidade cuja seca tornou sombrinhas e guarda-chuvas proteção contra o sol. “Nunca vi calor assim” se tornou expressão frequente.

Com o termômetro disparado, Araçuaí, antes já conhecida pela exploração das reservas de lítio, ganhou destaque no noticiário nacional e em outras partes do mundo. O recorde de temperatura na cidade mineira, em meio à onda de calor enfrentada no Brasil, foi registrado no site da BBC, de Londres, assim como em outros veículos internacionais de comunicação, incluindo o portal de um canal de TV da Bósnia (uma das repúblicas da antiga Iugoslávia).

A prefeitura local, em rede social, divulgou um vídeo em que orienta moradores sobre os cuidados que devem adotar frente aos dias de calor intenso. O secretário de Saúde de Araçuaí, Israel Ornelas, afirma que, como a população “está adaptada” ao forte calor, não chegou a haver corrida aos postos de saúde. Mas salienta que a secretaria mudou os horários de atividades realizadas ao ar livre, em função do calor extremo.

“As atividades físicas voltadas para os jovens, que eram realizadas no meio da tarde, foram mudadas para o fim da tarde, em um horário em que o sol está mais ameno”, informa Israel. Da mesma forma, disse, os exercícios físicos para idosos em bairros da cidade, que aconteciam por volta das 17h, foram adiados para 18h e 18h30, buscando fugir do sol.

Na Ação Social Santo Antônio, instituição que acolhe idosos no município, a celebração que ocorria aos sábados à tarde (16h) também mudou de horário: passou a ser realizada aos domingos de manhã (7h30), quando a temperatura está mais amena.


Manga longa sob calor inclemente

Em casa, no trabalho ou no comércio, os moradores locais se viram como podem para suportar o desconforto acarretado pelas temperaturas recordes. O sacrifício é maior para quem precisa trabalhar sob o sol ardente, como o pedreiro Gilmar Matos Barreto, de 50 anos. “Quando começo a trabalhar, às 7h da manhã, o sol já está forte”, diz.

Gilmar salienta que usa chapéu, camisa com mangas compridas, óculos escuros e protetor solar. Mesmo assim, não consegue evitar o desconforto. “O sol está tão forte que chega a doer a pele da gente. O calor também causa muito desgaste. Volto pra casa à noite muito cansado”, reclama. “Mas a gente precisa trabalhar para defender o pão de cada dia”, conforma-se o pedreiro.

Outro morador que encara o sol ao ar livre é o mototaxista Jonatas Santos de Araújo, de 30. “Araçuaí sempre foi uma cidade muito quente. Mas o que está acontecendo nos últimos dias é uma coisa inesperada para a gente que vive na região”, alarma-se Jonatas. Ele também usa vestimenta que cobre todo o corpo e protetor solar. “Antes, eu rodava pela manhã. Parava entre 11h e meio-dia e voltava a trabalhar. Agora, quase não consigo rodar à tarde. O clima não ajuda”, relata o mototaxista.

“Moro aqui desde que nasci. Nunca vi um calor assim”, confessa o lavrador Cláudio Ferreira Santos, de 42. “A cada dia que passa parece que a temperatura 'suspende' mais ainda”, diz o lavrador, lembrando que prefere sempre usar roupas leves (bermuda e camiseta) para andar de bicicleta pela cidade.


Sombrinha contra o sol em tempo de seca

Nas ruas de Araçuaí, a sombrinha passou a ser item de primeira necessidade para quem precisa se deslocar nas horas de sol mais intenso. Foi a solução encontrada por Francisca Dutra Vieira, de 74. “Moro em Araçuaí há 21 anos. Nunca vi um calor tão forte como este. Não tem outro jeito: para sair na rua a gente tem que usar sombrinha.” À noite, a temperatura alta também incomoda. “A gente não consegue dormir tranquila.”

A angústia é maior ainda para quem vive em ambiente apertado, sem ventilação. É o caso da doméstica Fernanda Santos Rodrigues, de 38, que “se arruma” com os seis filhos e dois netos em um barracão de três cômodos, no Bairro Nova Esperança, área carente da cidade.

“O calor é muito forte”, reclama Fernanda, com poucas palavras. Na casa não existe chuveiro. Ela e a prole numerosa têm de recorrer a um “banho de caneca”, no quintal da moradia. “Levo as crianças para tomar banho no Calhauzinho”, conta a mulher, explicando como faz para amenizar o calor dos filhos e dos netos no córrego que passa a três quilômetros de onde mora.

Com o marido sem trabalho e com problemas de saúde, Fernanda sobrevive com R$ 600 do Programa Bolsa-Família. Diante do orçamento apertado, recorre a energia “cedida” por um vizinho, assim como o abastecimento de água, pois os dois serviços foram cortados por falta de pagamento.


Desconforto na sala de aula

O calorão também provoca desconforto nas salas de aula de Araçuaí, prejudicando a concentração dos estudantes. “Fica muito quente. Às vezes, os professores desligam os ventiladores, dizendo que o barulho (dos aparelhos ligados) atrapalha. Aí, o calor aumenta mais ainda”, queixa-se Larissa Santos, de 13, aluna do ensino fundamental de uma escola estadual da cidade.
Rana Monteiro, da mesma idade, do 8º ano da mesma unidade, reforça a reclamação. “Está horrível, porque a sala de aula está muito abafada. Tem uma lotação enorme, com 35 alunos”, relata. A adolescente afirma também que estudantes enfrentam dificuldades para acesso à água, pois as torneiras dos bebedouros muitas vezes apresentam defeitos.


O comércio que sofre e o que lucra

Na última semana, por causa do forte calor, os estoques de ventiladores nas lojas de Araçuaí esgotaram. Mas a temperatura extrema causa outros impactos no comércio, exigindo cuidados com alguns produtos. Um deles é a venda de flores, sensíveis ao clima quente.

A comerciante Bellah Leitte, funcionária de uma floricultura na cidade do Vale do Jequitinhonha, explica que, para evitar perdas, mantém rosas, margaridas, cravos e outras “flores de corte”, mais sensíveis ao calor, em uma câmara fria, cuja temperatura varia de 6 a 9 graus. Para garantir maior durabilidade das flores, ao preparar buquês, explica Bella, ela usa palha de bananeira umedecida.

Os produtos vendidos no estabelecimento são adquiridos em Holambra, a capital das flores, em São Paulo, com clima bem mais ameno em relação a Araçuaí. Bellah Leitte conta que mantém ainda um ambiente climatizado, onde são conservadas as espécies de flores plantadas em vasos, como girassóis e kalanchoes. Ela salienta ainda que sempre orienta os clientes sobre cuidados que devem adotar para preservar as flores por mais tempo no clima de temperatura elevada.

As vendas de sorveterias em Araçuaí dispararam. A empresária Sílvia Chaves, dona da rede “Sorvete Amigo”, fundada na cidade, confirma o crescimento, não sem certa preocupação. “A gente fica feliz por um lado, com o aumento do faturamento, mas, por outro, lamentamos as mudanças climáticas, que sabemos ser consequência do comportamento do homem, que vem destruindo a natureza”, afirma a empresária.

Sílvia Chaves nasceu na zona rural de Araçuaí e fundou sua primeira sorveteria na cidade há 25 anos. Hoje, o Sorvete Amigo tem mais de 50 lojas em municípios do Vale do Jequitinhonha, no Norte de Minas e no Sul da Bahia, regiões de temperatura elevada, que favorecem o consumo do seu produto. “Temos satisfação com o aumento das vendas do sorvete diante desse clima quente. Mas também devemos lembrar que existem seres humanos que estão sentindo os efeitos negativos da onda calor”, reflete.

O que fez Araçuaí ferver

O meteorologista Claudemir Azevedo, do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) em Belo Horizonte, explica que no período de 10 a 19 de novembro, a forte onda de calor varreu vários estados brasileiros, o que contribuiu para a marca histórica de 44,8°C em Araçuaí. “Em 19 de novembro, a maior temperatura máxima já registrada em toda a série histórica pelo Inmet na estação de Araçuaí se deu pela contribuição da extrema onda de calor e do avanço de uma frente fria pelo litoral do Sudeste. Normalmente, antes de uma frente fria, a temperatura do ar se eleva ainda mais em determinada localidade”, afirma. O também meteorologista Ruibran dos Reis, do Instituto Climatempo, ressalta que, historicamente, as temperaturas são elevadas em todo o Vale do Jequitinhonha, devido à massa de ar que atua entre o Brasil e a África. “Por ser uma região de baixa altitude, a influência da massa de ar quente ali é ainda maior”, afirma, lembrando que o mesmo fenômeno dificulta a formação de nuvens naquela parte do estado, que sofre com as secas sucessivas, como a atual.