Restauradora Dulce Consuelo Senra segura a preciosidade encontrada pela equipe durante as atividades de recuperação -  (crédito: EDÉSIO FERREIRA/EM/D.A PRESS)

Restauradora Dulce Consuelo Senra segura a preciosidade encontrada pela equipe durante as atividades de recuperação

crédito: EDÉSIO FERREIRA/EM/D.A PRESS

Mariana – As igrejas barrocas de Minas são templos de fé, espaços da arte colonial e lugares sagrados de permanentes descobertas, especialmente quando as bem-vindas obras de restauração salvam as edificações da derrocada. No distrito de Camargos, em Mariana, na Região Central do estado, a equipe responsável pelas atuais intervenções na Matriz Nossa Senhora da Conceição encontrou uma pequena joia na forma de um livro em madeira. Com douramento e policromia, a delicada peça traz, na capa, um desenho que lembra a “chinesice” – pinturas que recriaram, no século 18, em igrejas e capelas mineiras, motivos da China e de outras regiões da Ásia.

A satisfação toma conta da equipe, que começou o trabalho em agosto e tem um ano pela frente. Segundo a restauradora Dulce Consuelo Senra, o objeto foi achado durante a limpeza do camarim de um dos retábulos colaterais, então coberto pelos escombros de uma parede. Ao lado da também restauradora Tereza Cristina Dias, Dulce explica que o livro, com 15 centímetros de altura, 7cm de largura e 4cm de espessura, faz parte do retábulo colateral de Nossa Senhora das Dores, no qual há um medalhão. “O encaixe foi perfeito”, aponta a peça maciça.

Também escondidas ao longo dos anos, as partes de um altar foram localizadas pela equipe da empresa Cantaria Conservação e Restauração, de Belo Horizonte, encarregada dos serviços de restauração civil e dos elementos artísticos – o conjunto desmontado passa também pelo processo de restauro e, em breve, será exposto em Mariana.

Esforço Conjunto

Os recursos para a obra foram conseguidos pelo Conselho Municipal do Patrimônio Cultural de Mariana (Compat), por meio de uma condicionante. Na sequência, foi firmado um acordo com a Arquidiocese de Mariana, que recebeu o valor para executar e fiscalizar a obra. Já os recursos para elaboração dos projetos são da Prefeitura de Mariana e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), via PAC das Cidades Históricas, informa a engenheira e arquiteta Anna de Grammont, da Prefeitura de Mariana e gestora do PAC das Cidades Históricas na cidade.

Templo, do início do século 18, está passando por um processo detalhado de intervenções

Templo, do início do século 18, está passando por um processo detalhado de intervenções

EDÉSIO FERREIRA/EM/D.A PRESS

Portas abertas

Satisfeito com o restauro de “uma das mais antigas igrejas de Minas e um belo monumento artístico”, o padre Edmárcio Moreira Gomes, titular da Paróquia Nossa Senhora da Glória, em Passagem de Mariana (responsável por atender a comunidade de Camargos), informa que as atividades religiosas, como a celebração de missa uma vez por mês, continuam acontecendo em outro espaço.

“Nosso propósito, após as obras, é que a igreja esteja sempre aberta à evangelização e ao turismo religioso. Por Camargos, além das bicicletas, passa o caminho religioso da Arquidiocese de Mariana 'Nos Passos de Dom Viçoso', cuja revitalização está sendo pensada. Além disso, quando possível, após a missa do mês, pretendemos que o templo possa abrigar uma intervenção cultural, e exemplo da apresentação de pequenas orquestras, corais e de outros grupos, fomentando o uso adequado e responsável da igreja e, assim, cuidando de sua permanente manutenção”, diz o pároco.

Passeio pelo passado

Os recentes achados, como o livro e partes do altar, estimulam a restauradora Michelle Neves, para quem cada retábulo traz uma história: “Conhecê-la valoriza ainda mais nosso ofício.” E, no dia a dia, há “surpresas e desafios”, acrescenta a auxiliar de restauração Naryan Machado Pereira.

Ao lado de Dulce Senra, do engenheiro civil Hudson Heli Pedrosa, da Cantaria, e da arquiteta Sandra Fosque, da Arquidiocese de Mariana, os repórteres do Estado de Minas conheceram outras particularidades da construção iniciada no início do século 18. Diante de uma parede sem reboco, na nave central, Dulce mostra quatro sistemas construtivos existentes na matriz: estrutura de pedra, adobe, taipa e pau-a-pique.

O serviço com acompanhamento da Arquidiocese de Mariana será longo, mas, desta vez, os cupins não foram os principais vilões na degradação da igreja, localizada numa elevação, com uma cruz de pedra-sabão na base da escadaria e distante 20 quilômetros do Centro de Mariana, a primeira cidade de Minas. “As brocas causaram os maiores estragos na madeira. Não foram os cupins, graças a Deus!”, revela Dulce Senra.

Num corredor lateral, a equipe encarregada do serviço apresenta outras singularidades da Matriz Nossa Senhora da Conceição. Entre elas, podem ser vistas as antigas peças do sistema de iluminação a carbureto, do século 19. “Esta igreja é um exemplar muito raro em Minas, e esses equipamentos do sistema de iluminação foram preservados”, avalia a arquiteta Sandra Fosque, que estuda o templo desde 2012.

No caminho do ouro

Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pela Prefeitura de Mariana, essa também responsável pelo tombamento do Núcleo Histórico Urbano do Distrito de Camargos, a Matriz de Nossa Senhora da Conceição fica nas proximidades da Serra do Caraça, na Estrada Real. O local nasceu no início do século 18, quando surgiram ali, em busca de ouro, os irmãos Tomáz Lopes de Camargos, João Lopes de Camargos e Fernando Lopes de Camargos.

De acordo com o Iphan, a Matriz Nossa Senhora da Conceição é considerada uma das mais antigas de Minas, pertencendo ao grupo típico de igrejas mineiras de princípios do século18. Conforme pesquisa da autarquia federal, o templo apresenta “adro cercado por murada de pedra e escadaria à frente que leva a um belo cruzeiro também de pedra, colocado em um ponto mais baixo, constituindo um conjunto original dentro da implantação urbana de Minas, desse século”.

E mais: O retábulo do altar-mor, ocupando todo o fundo do presbitério, apresenta decoração em talha, com muitas esculturas, elementos zoomorfos e fitomorfos e dossel estilizado, da primeira fase do barroco. Os altares colaterais também são trabalhados em talha e esculturas.

Um dos mais antigos distritos de Mariana, Camargos foi um lugar progressista no século 19, onde viviam quase 2 mil pessoas, como anota o Livro de Visitas Pastorais, de 1826. Hoje, a população está reduzida a menos de 100 pessoas, embora sejam mantidas as tradições e a festa da padroeira.