Do lago que é uma das marcas da Lapinha da Serra, sobraram ao fim da estiagem vastas paisagens de lama ressecada aos pés do gigantesco maciço -  (crédito: Leandro Couri/EM/D.A.Press)

Do lago que é uma das marcas da Lapinha da Serra, sobraram ao fim da estiagem vastas paisagens de lama ressecada aos pés do gigantesco maciço

crédito: Leandro Couri/EM/D.A.Press

Os resultados dos levantamentos de áreas de recarga de mananciais de classe especial com focos de queimadas e redução da cobertura vegetal em Minas Gerais entre 2018 e 2022 são considerados preocupantes. “Qualquer distúrbio no entorno de cursos d'água de classe especial e suas áreas de recarga pode causar alteração na qualidade da água. Queimadas, desmatamento, mineração, soltura e pastagem de gado vão comprometer a qualidade. É fundamental preservar o entorno desses recursos hídricos”, destaca o geógrafo Antoniel Fernandes, professor dos departamentos de Geografia e Biologia da PUC Minas.

A legislação também veda qualquer tipo de contaminação nessa classe de águas, como expresso na Resolução 430/2011 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama): “Nas águas de classe especial, é vedado o lançamento de efluentes ou disposição de resíduos domésticos, agropecuários, de aquicultura, industriais e de quaisquer outras fontes poluentes, mesmo que tratados”. Desrespeito a essa proibição configura crime.

Entre os municípios em locais de recuperação de águas que apresentaram maior crescimento de focos de incêndio no último ano (no comparativo com a média de 2018 a 2022), e considerando também aqueles com maiores desmatamentos no entorno das áreas de recarga de mananciais de classe especial, aparecem nos últimos cinco anos Itabira (Bacia Hidrográfica do Rio Doce), Santana do Riacho (Rio Doce e Rio das Velhas), Itapecerica (Rio Pará) e Santo Antônio do Monte (Rio Pará).


Vegetação dizimada

Os aumentos mais expressivos em municípios que têm acima de 10 focos de incêndio na média anual, segundo o Instituto Nacionas de Pesquisasa Espaciais (Inpe), se deram em Santana do Riacho, que passou de 14,25 para 36 (aumento de 152%) em 2022, Buenópolis, que foi de 40 para 80 (+100%), Itabira ( 72%), Itapecerica ( 70%), Mariana ( 46%), Bom Despacho ( 37%), Antônio Carlos ( 35%), Santo Antônio do Monte ( 19%), Conceição do Mato Dentro ( 15%) e Varginha ( 10%).

Já as maiores perdas de cobertura florestal registradas pelos satélites da Global Forest Watch (GFW) se deram em Itabira, onde foram derrubados 366 hectares, Santa Bárbara (312 ha), Itapecerica (307 ha), Jaguaraçu (202 ha), Lima Duarte (109 ha), Santo Antônio do Monte (104 ha), Bom Despacho (93 ha), Santana do Riacho (81 ha), Piracema (78 ha) e Pedra do Indaiá (78 ha).

A bacia hidrográfica que mais teve perdas de vegetação arbórea nas áreas de recargas de mananciais de classe especial foi a do Rio Doce, com 1.164 ha perdidos, seguida pela do Rio Pará (743 ha), Rio Paraíba do Sul (434 ha), Rio Grande (345), Rio das Velhas (127 ha) e Rio Paraopeba (96 ha). Os municípios de Santana do Riacho e Jaboticatubas têm uma intrincada rede de áreas de mananciais que servem aos rios das Velhas e Doce, tornando virtualmente impossível separar essa rede, onde a perda foi de 115 ha, mais que em todas as áreas de recarga do Rio Paraopeba.

Para o vice-presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBH-São Francisco), Marcus Vinícius Polignano, tantas agressões podem custar a redução da injeção das águas de qualidade superior nos maiores rios. “Esses impactos justamente nas melhores águas podem ser significativos. Mais águas e de melhor qualidade entrando nos grandes rios, por mananciais de classe 1 e, ainda melhor, de classe especial, têm um efeito formidável para ajudar a melhorar a qualidade dos cursos que receberam esgotos e outros poluentes. Isso depura, dilui essas impurezas. Melhora para quem vai captar, para a pesca, para toda a vida do rio. Quanto pior a classe de águas, mais caros e complexos os tratamentos serão”, afirma.

Multas convertidas em recuperação

Uma das ações que podem ajudar na recuperação ambiental de áreas de recarga de recursos hídricos foi a regulamentação, neste ano, da conversão de multas ambientais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente. Entre as intervenções possíveis estão incluídas “áreas degradadas para conservação da biodiversidade e conservação e melhoria da qualidade do meio ambiente, processos ecológicos e de serviços ecossistêmicos essenciais, vegetação nativa e áreas de recarga de aquíferos”, de acordo com o Ibama.

De paraíso a terra rachada

A muralha de rocha cinzenta da Serra do Breu se debruça sobre a comunidade de Lapinha da Serra como um gigante de onde normalmente despencam águas límpidas de diversas cachoeiras. Parecia vaidoso, assim posicionado para se admirar no espelho d'água da Lagoa da Lapinha. Mas a seca que tem tomado essa que é uma das fontes das mais puras águas de Minas Gerais roubou a vaidade do gigante, sugando-lhe o lago e deixando apenas chão de barro trincado como o de um deserto. Desidratou-lhe as cachoeiras, castigando assim o turismo e o abastecimento da comunidade abaixo. O cenário bucólico sofreu à espera de que as chuvas voltassem.

Sem o lago e algumas das captações de água das cachoeiras, os caminhões-pipa da Prefeitura de Santana do Riacho se tornaram a única fonte de abastecimento de diversas famílias. Uma situação pela qual muitos nunca imaginavam passar naquele balneário, e que pode se refletir na quantidade de água de classe especial que desce das montanhas para as bacias hidrográficas do Rio das Velhas e do Rio Doce.

Morador da localidade conhecida pela riqueza de recursos hídricos, o lavrador Djalma Domingues Ferreira agora depende do abastecimento que chega por meio de caminhão-pipa

Morador da localidade conhecida pela riqueza de recursos hídricos, o lavrador Djalma Domingues Ferreira agora depende do abastecimento que chega por meio de caminhão-pipa

Leandro Couri/EM/D.A.Press

“O caminhão-pipa é que abastece minha casa, uma vez por semana, com de 2 mil a 3 mil litros. É a água que uso no dia a dia para tomar banho e para cozinhar. Pior, que tem vezes que a água vem meio suja, por causa do riacho onde pegam. Tem de economizar: lavar a roupa e usar depois a água de sabão para lavar a casa e dar descarga. Quando falta, mesmo economizando, a gente precisa comprar por R$ 300 o caminhão-pipa”, relata o lavrador Djalma Domingues Ferreira, de 36 anos. “A comunidade cresceu muito, é a mesma fonte de água e os incêndios ainda reduzem ainda mais a cada dia a água que descia da serra”, completa ele, que enfrenta dias de desabastecimento com a mulher e os filhos de 8 e 17 anos.

Purificação comprometida

“As águas especiais, por serem mais puras, contribuem com a diluição dos poluentes dos rios que chegam depois de sofrer com maior carga de aporte de material exógeno (lançamentos de poluentes). Se o Rio das Velhas recebe as águas de outro rio, como o Paraúnas e o Rio Cipó, que vêm da Serra do Cipó, além de diluir, ajuda a depurar a água levando para o Velhas maior quantidade de oxigênio dissolvido, microrganismos e outros materiais que reduzem a sua poluição”, afirma o químico, espeleólogo e ambientalista Luciano Faria.

“A Serra do Cipó também sofre com a pressão dos grandes empreendimentos minerais e com a expansão das áreas residenciais, de condomínios e habitacionais, acarretando a impermeabilidade do solo, desmatamento da vegetação natural e queimadas que resultam em incêndios florestais”, explica o especialista. “Com a perda dessa cobertura vegetal ou a impermeabilização, mais uma vez as áreas de recarga terão a infiltração das chuvas prejudicada, pois a água precisa de amortecimento para se infiltrar e se acumular no subsolo. Sem isso, escorre para os rios e vão embora”, destaca.

Cristiano Reis, chefe da Brigada Voluntária Guardiões da Serra, observa marcas dos últimos incêndios, apontados como um dos agravantes para a secagem de fontes na região

Cristiano Reis, chefe da Brigada Voluntária Guardiões da Serra, observa marcas dos últimos incêndios, apontados como um dos agravantes para a secagem de fontes na região

Leandro Couri/EM/D.A.Press

“Aqui no alto da serra, essas vertentes de águas cristalinas e puras nos abastecem, mas depois descem para os rios que já estão poluídos, por terem vindo das cidades. É papel nosso, enquanto humanidade e seres que pretendem continuar a viver neste planeta, defender essas águas, desde os pequenos veios d'água, por menores que sejam. Ver as cachoeiras, secas como estão, e tentar conscientizar a comunidade para evitar incêndios e fazer trabalhos de recuperação das áreas de nascentes”, conclama Cristiano Reis, coordenador da brigada voluntária Guardiões da Serra, sediada na Lapinha da Serra.

Mapeamento das áreas de recarga

O Igam informa que nem todas as áreas de recarga de águas de classe especial dos maiores rios mineiros estão mapeadas. “Oito Circunscrições Hidrográficas do estado possuem enquadramento vigente e nove estão em processo de deliberação pelo CERH-MG. Após essa etapa, novos trechos serão reconhecidos como Classe Especial e, assim, suas áreas de recarga”, informa o Igam. Áreas de proteção máxima de recursos hídricos subterrâneos compreendem zonas de recarga, descarga e transporte de aquíferos altamente vulneráveis à poluição e que representam depósitos de águas essenciais para abastecimento ou atividades consideradas prioritárias pelos comitês de bacia ou, na sua ausência, pelo CERH-MG, acrescenta o instituto.