Para amparar as mulheres vítimas de violência doméstica, a Lei Maria da Penha atribui responsabilidades aos homens autores de violência, como a obrigatoriedade de frequentar centros de educação, reabilitação e acompanhamento psicossocial -  (crédito: Cristiano Gomes/CB/D.A Press)

Para amparar as mulheres vítimas de violência doméstica, a Lei Maria da Penha atribui responsabilidades aos homens autores de violência, como a obrigatoriedade de frequentar centros de educação, reabilitação e acompanhamento psicossocial

crédito: Cristiano Gomes/CB/D.A Press

"Autor de violência doméstica… se isso é pesado? Com certeza", reconheceu Gustavo (nome fictício), de 48 anos, durante conversa com a reportagem do Correio. Ele faz parte da estatística de homens que cometeram 19.254 casos de violência doméstica contra mulheres no Distrito Federal em 2023. A quantidade equivale a cerca de 52 ocorrências por dia.

Assim como Gustavo, outros 6.740 homens foram encaminhados ao Espaço Acolher, antigo Núcleo de Atendimentos à Família e aos Autores de Violência Doméstica (NAFAVD), da Secretaria de Estado da Mulher, no ano passado. Gustavo não se reconhecia como agressor até responder a um processo judicial. "É uma linha muito tênue entre você achar que está certo e realmente estar. É nessa linha tênue em que se comete o crime. Depois que isso acontece, a Lei (Maria da Penha) te enquadra e você se torna um autor de violência doméstica", admitiu.

A consciência do peso de ser rotulado como "autor de violência doméstica" pode ser um ponto de partida para que os homens comecem a mudar essa realidade sórdida. Entre 2015 e 2024, o DF registrou 186 feminicídios. Em 2023, uma mulher foi assassinada a cada 10 dias na capital do país. Foram 34 vidas perdidas, o maior número registrado na série histórica, iniciada quando entrou em vigor a lei que define o feminicídio como crime hediondo, em 2015. Nos primeiros 17 dias de janeiro deste ano, três mulheres foram brutalmente assassinadas por companheiros ou ex-companheiros.

As estatísticas escancaram a violência decorrente da desigualdade de gênero. O Correio conversou com profissionais que lidam com pessoas enquadradas na Lei Maria da Penha, e ouviu relatos de homens que passaram por programas psicossociais por decisão judicial.

Responsabilidade

Para amparar as mulheres vítimas de violência doméstica, a Lei Maria da Penha contempla um rol de medidas protetivas que podem ser impostas ao agressor, aplicadas em favor da vítima ou de caráter matrimonial. Entre as impostas ao agressor, as mais comuns incluem a proibição de contato e frequência em locais específicos e aproximação da vítima e de membros da família. Além de implicar restrições, a legislação também atribui responsabilidades aos homens autores de violência, como a obrigatoriedade de frequentar centros de educação, reabilitação e acompanhamento psicossocial individual ou em grupo.

Entre agosto e setembro do ano passado, Gustavo participou de reuniões virtuais do grupo de reflexão para homens do Espaço Acolher — NAFAVD. Ele explica que o grupo é estruturado em dinâmicas em torno de uma temática a ser debatida. "Sempre é dado um tema, uma forma de violência possível. A partir disso, cada um fala seu ponto de vista", contou. Para ele, a exposição de ideias conflitantes entre os participantes evidencia a necessidade de pensar sobre os próprios comportamentos. "É bem interessante. Em várias situações em que você acha que não está cometendo um crime, ou algo errado, você passa a entender (e a identificar a violência) na dinâmica", disse.

Todas as quintas-feiras, Augusto (nome fictício), 46, participa dos encontros do Espaço Acolher. Apesar de ter sido encaminhado para o grupo, ele admitiu compreender que isso seria um passo importante para o próprio desenvolvimento pessoal. "Cheguei retraído para as primeiras discussões, porque a gente sente um certo constrangimento, sabe? Mas o acolhimento nos deixa confortáveis e nos motiva a continuar", ressaltou.

No último encontro, a discussão sobre as consequências do alcoolismo nas relações pessoais lhe chamou atenção. "Eu não bebia todos os dias, mas aprendi que é preciso ter cautela, pois foi um episódio envolvendo álcool que me levou até o grupo (e à punição na Justiça)". O episódio de violência, segundo ele, ocorreu apenas uma vez. "Mas não me considero uma pessoa sem caráter nem valores", refletiu.

Augusto enfatiza que, antes de participar do grupo, não costumava falar sobre relações, incômodos e sentimentos, mas entende que o ato de verbalizar evita o acúmulo de emoções desagradáveis, impedindo que ele "estoure" de uma vez e pratique algum ato violento. "Hoje tenho mais autocontrole", ponderou.

Em uma das palestras acerca das referências que os participantes tinham das suas figuras paternas, ele refletiu que a sua falta de abertura vinha justamente de casa. "Com o meu pai, a gente não tinha a oportunidade de verbalizar sobre as coisas, nem mesmo de se defender de alguma bronca", recordou. Com suas duas filhas, o comportamento permaneceu. "Eu tinha pouca proximidade com elas, mas, agora, estou me esforçando para estar mais presente e construir uma relação melhor", garantiu. As mudanças de comportamento são visíveis, segundo ele.

Psicoeducação

Victor Valadares, psicólogo do Espaço Acolher de Samambaia, aponta que o atendimento psicossocial não é um grupo de psicoterapia, mas sim de psicoeducação. Ou seja, o trabalho envolve uma série de profissionais, como pedagogos, assistentes sociais, educadores, além de psicólogos, voltados a abordar a violência como uma questão cultural. "Falamos na educação porque queremos ter uma mudança de cultura, de percepção, das relações do homem referentes às mulheres e dos homens em relação a eles mesmos", afirmou.

Os encontros do Espaço Acolher visam três objetivos principais: informar, refletir e responsabilizar. "Falamos muito sobre as questões de consentimento, sexualidade e comunicação", exemplificou Valadares. A intenção é que, gradualmente, os participantes comecem a questionar suas visões sobre os papéis de gênero e reconheçam a violência para além de um acontecimento pontual que motivou a medida protetiva.

O grupo de reflexão para homens do Núcleo Judiciário da Mulher (NJM), vinculado ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), adota uma estratégia semelhante, conforme explicou Priscila Parada, psicóloga jurídica. "Um objetivo importante do grupo é que ele consiga olhar para além daquela ocorrência, considerando o contexto em que aconteceu. É muito comum a ocorrência não ter sido a situação mais grave que já ocorreu... Ela só foi a gota d'água", apontou.

Cinco temas são trabalhados ao longo dos oito encontros: masculinidade, gênero, violência contra a mulher, habilidades relacionais, Lei Maria da Penha e autorresponsabilização. "A ordem dos temas não é aleatória", assegurou Priscila. "Ela tem a ver justamente com o partir do olhar para si, para depois olhar para o outro, para relação e para se entender como parte de uma sociedade", resumiu.

Na prática, os assuntos são debatidos a partir de situações cotidianas hipotéticas. Gustavo narra um exemplo. "O homem chega em casa cansado, sua cônjuge lhe pede para fazer alguma coisa, e ele começa a se alterar, não querer. Começa uma discussão, ele pega e sai batendo a porta. A pergunta é: você acha que ele deveria sair para evitar qualquer problema?", ilustrou.

"São colocadas perguntas sutis que dão abertura para interpretações. Nesse tema você consegue se encontrar em um grupo e, depois, confrontar a sua ideia inicial. É muito bacana", completou.

O psicólogo do Espaço Acolher comenta ser, inicialmente, comum, nos grupos, os homens acharem que a lei pune demais, enquanto as mulheres a consideram branda. "Eles acham que não deveriam estar aqui, julgam ser um exagero a mulher tê-los denunciado. Tendem a querer explicar, argumentar e racionalizar a violência cometida", relatou.

"No grupo, queremos que eles se responsabilizem, criem empatia. Mas cuidar de si, sem olhar para o outro, nesse contexto de violência, não é o suficiente. Se a pessoa não tiver condição de olhar para o outro, ela continua nessa posição vitimizada", completou a psicóloga do NJM.

Fatores de risco

A reflexão mediada nos grupos busca gerar, nos homens, consciência sobre comportamentos agressivos que podem se repetir e escalar para um ciclo de violência, culminando em casos de feminicídio. Segundo a pesquisa Fatores de risco de feminicídios no Distrito Federal, publicada em 2021, na Revista Brasileira de Ciências Criminais, os elementos que podem aumentar a possibilidade de acontecer uma violência são fatores de risco. Eles não causam a violência, mas são importantes enquanto componentes precipitadores.

Isolar a mulher de amigos e familiares, abusar de álcool/drogas, demonstrar ciúmes excessivo e comportamento controlador são fatores de risco avaliados, juntamente com o histórico criminal do agressor. Para Luciana Lopes Rocha, juíza auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), esses indicadores de risco de feminicídio demandam atenção do Poder Judiciário e da Rede de Proteção, visando estratégias mais eficazes na prevenção e enfrentamento da violência contra mulheres. "Em vista disso, o Conselho Nacional de Justiça recomenda que os tribunais de todos os estados e do DF instituam e mantenham programas voltados à reflexão e à responsabilização de autores de violência", salientou.

De acordo com os psicólogos entrevistados pela reportagem, a reincidência na Lei Maria da Penha é ínfima ou inexistente entre os participantes dos grupos de reflexão. "Nunca houve feminicídio cometido por homens que passaram pelo nosso grupo", afirmou Priscila. Em 12 anos de atuação no Espaço Acolher, Victor recorda de apenas um caso de feminicídio ocorrido após a intervenção. "Eu me lembro de um caso, no máximo, contando todas as unidades do Acolher", contou.

É importante lembrar que qualquer cidadão pode acessar o serviço psicossocial de forma espontânea. Basta comparecer ao Espaço Acolher — NAFAVD mais próximo portando RG e CPF.

Questões judiciais

A pesquisa Grupos reflexivos e responsabilizantes para homens autores de violência contra mulheres no Brasil: mapeamento, análise e recomendações, realizada em 2021 pelo Centro de Estudos Jurídicos do Tribunal de Justiça (Cejur), mapeou 13 iniciativas desse cunho no DF.

Além do Espaço Acolher, o MPDFT mapeou as seguintes instituições de encaminhamento psicossocial para vítima e autor de violência no DF: Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Ceam), Casa da Mulher Brasileira (CMB), Programa de pesquisa, assistência e vigilância à violência (PAV), Núcleo de Assessoramento sobre Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Nerav/TJDFT); Setor de Análise Psicossocial (Seps/MPDFT), e grupos de reflexão de universidades.

A psicóloga Priscila Parada afirmou que a maioria dos autores de violência doméstica que chegam ao serviço psicossocial não têm antecedentes criminais, e estão sob suspensão condicional da pena (Sursis).

O benefício só pode ser oferecido àqueles condenados à pena inferior a dois anos de prisão. "A maioria dos casos que recebemos se encontra no estágio (Sursis)", indicou.

Raoni Parreira Maciel, promotor de Justiça e coordenador do Núcleo do Tribunal do Júri e de Defesa da Vida do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), lembra que a reincidência em crime de violência doméstica e familiar implica penas maiores e regime de cumprimento de pena mais gravoso.

"Para todos os crimes, porém, de violência doméstica ou não, haverá sempre progressão de regime, desde os mais gravosos até o regime aberto", completou o promotor. Em 2023, a Comissão de Segurança Pública (CSP) do Senado aprovou um projeto de lei que endurece as penas para o crime de feminicídio. Assim, o tempo mínimo de reclusão subiu de 12 para 20 anos, com a penalidade máxima de 30 anos em regime fechado.