Juiz Francisco Tojal de Matos conversou com o podcast do Correio Braziliense -  (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Juiz Francisco Tojal de Matos conversou com o podcast do Correio Braziliense

crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press

A violência contra a mulher é uma realidade persistente, que afeta, principalmente, e de forma desproporcional, negras e periféricas. Por isso, há uma articulação entre diferentes instituições para a construção de políticas judiciárias mais inclusivas e menos discriminatórias. Nesse contexto, o Judiciário tornou-se parte da luta da proteção de mulheres em situação de vulnerabilidade. Esse é o panorama apresentado, ontem, pelo vice-presidente do Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid), Francisco Tojal Dantas Matos, em entrevista às jornalistas Mariana Niederauer e Adriana Bernardes, no PodCast do Correio. Matos sublinhou, na conversa, a importância da educação para transformar essa realidade. Acompanhe os principais trechos da entrevista.

Qual o objetivo dessa articulação com os principais órgãos ligados ao Judiciário?

Quando passamos a ver o mundo com lentes de gênero, raça e classe, tudo muda. É o tipo de coisa que a gente não tem como voltar atrás. Houve uma ruptura de paradigmas quando comecei a me envolver com essa temática. Acabei me tornando vice-presidente do Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica, que é o que me trouxe aqui. O nosso intuito é conversar com todo mundo sobre a construção de uma política judiciária mais inclusiva, humana e sensível, que enxergue, especialmente, as mulheres em situação de vulnerabilidade. O Judiciário precisa acolher essas pessoas.

Como deve ser esse acolhimento?

A Justiça atual não pode ser mais uma justiça cega, esse estereótipo já caiu por terra. A Justiça precisa enxergar quem são essas pessoas e acolhê-las, pois são as dores humanas que movem a Justiça.

Dores que deixam marcas para toda a vida...

A minha pesquisa de mestrado, feita na Vara de Violência Doméstica do Cabo de Santo Agostinho (PE), diz que 60% das mulheres que atendemos no período de 2016 a 2019 demoraram de um a cinco anos sofrendo atos de violência até prestar um boletim de ocorrência. Essas pessoas costumam sofrer muito, porque a violência doméstica é cíclica, como se fosse uma progressão criminosa. Começa com aqueles comentários sutis, com a restrição de roupa que vai usar, depois pega a senha das redes sociais, impossibilita de sair com aquela amiga de que gosta e, nessa escalada, o feminicídio é o ápice. É preciso denunciar o quanto antes para que haja interrupção desse ciclo da violência.

Em que o Judiciário precisa aprimorar a sua atuação?

São três os papéis do juiz ou da juíza na violência doméstica. À luz da Lei Maria da Penha, sabemos que precisamos da punição, porque os estereótipos de gênero estão em todo lugar, a todo momento e nos atravessam em todas as nossas relações. Na questão do acolhimento, para que essas pessoas se sintam ouvidas e acolhidas dentro da instituição, elas passam por um processo de vulnerabilidade. Por fim, existe o papel educativo, dos direitos humanos, de conversar sobre o assunto.

Qual a importância da articulação de políticas públicas de Estado?

Sem políticas públicas, a gente não vai a lugar nenhum. Precisamos de destinação orçamentária para essa temática, de compromisso e articulação. Todo mundo é responsável pela violência doméstica. Desde você, por exemplo, que está em casa e escuta sua vizinha pedindo socorro. Se você silenciar, está contribuindo com esse tipo de comportamento. É inadmissível que, dentro de uma empresa, uma mulher e um homem que ocupam o mesmo cargo, com as mesmas funções, tenham salários diferentes. Essas posturas contribuem com a discriminação, o ódio e a violência.

Recentemente, vimos uma campanha incentivando homens a denunciar. Mensagens que jogam para a mulher a responsabilidade de sair do ciclo de violência devem ser repensada?

São posturas que não se excluem, são complementares. A gente precisa falar num processo de reeducação de homens. Nós precisamos desaprender e reaprender o que é ser homem, ter uma linguagem mais simples e acessível para essas pessoas, mas a gente precisa reeducar os homens.

O senhor percebe uma mudança no perfil dos casos de violência?

As pessoas têm uma certa curiosidade de saber se as denúncias de violência estão aumentando porque há mais casos ou porque as pessoas estão tendo mais consciência. Acho que as mulheres estão mais conscientes dos seus direitos, de que existem ferramentas para interrupção do ciclo da violência e que é preciso interromper o quanto antes. Uma piada machista pode contribuir com um feminicídio lá na frente. A omissão é uma postura que coaduna com os comportamentos machistas.

No DF, a grande parte das mulheres vítimas de feminicídio ou de violência doméstica são periféricas, pretas e pobres. É um retrato do Brasil?

A mulher negra periférica é mais vulnerável do que a mulher branca. O que não significa dizer que mulheres brancas não sejam vítimas de violência. A violência contra mulher é perversamente democrática. Ela está em todos os espaços e em todas as classes sociais, mas, sem dúvida, as mulheres pretas são mais vulneráveis por serem as que têm menos acesso à educação, por todas as questões estruturais do nosso país e as que têm menos acesso a empregos formais. O empoderamento econômico é uma ferramenta que contribui muito para a interrupção do ciclo.

Como o senhor vê a presença das mulheres no Judiciário?

Eu vibrei muito com a resolução da paridade de gênero do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Foi um grande avanço. Precisamos que as mulheres estejam em espaços de poder. Nós, homens, somos construídos não apenas para dominar outras mulheres, mas para dominar outros homens também. Infelizmente, nesta sociedade machista e patriarcal, o que é mais importante no contexto de vida da mulher é esse olhar ultrapassado sobre o casamento. Existem entraves, há pesquisas do Judiciário que falam que as mulheres acabam não progredindo na carreira da magistratura porque elas têm filhos. Elas acabam não chegando em cargos de gestão e sofrem mais dificuldades naqueles espaços por serem mulheres. Dia desses, tive que indeferir uma pergunta de um advogado, com base no protocolo. Ele perguntou se a mulher tomava remédio controlado. Qual é a relevância de saber se a mulher toma remédio controlado? Naquele contexto, ele queria gerar uma desqualificação da palavra da mulher, reproduzindo estereótipo de que a mulher é louca e desequilibrada. Precisamos estar atentos a esses estereótipos.

Há algum conselho em relação ao carnaval?

A roupa, saia e o decote jamais podem ser justificativas para qualquer ato de violência. Acho que vale esse recado, a fantasia não pode ser um convite para a pessoa praticar qualquer ato de violência. Somos pessoas livres e podemos nos expressar de diversas maneiras. Então, não é porque uma mulher está usando uma roupa curta ou dançando que isso é um convite para você criar qualquer contato físico. Ninguém está falando da paquera, estamos falando da falta de respeito e de extrapolar os limites. O recado é que "Não é não". Por favor, não vão para a cama com outra pessoa que não estiver em condições de expressar a sua vontade. Consentimento, respeito e liberdade são as palavras-chaves de qualquer carnaval e de qualquer festa.

*Estagiária sob a supervisão de Vinicius Doria