Texto ainda não prevê a criminalização deste tipo de violência -  (crédito: Manuel Alejandro Leon/Pixabay)

Texto ainda não prevê a criminalização deste tipo de violência

crédito: Manuel Alejandro Leon/Pixabay

A Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) anunciou na terça-feira (14/11), por meio do Diário Oficial do Município, que entrou em vigor a Lei de N°11.609, que trata da promoção da dignidade da pessoa gestante e do enfrentamento da violência obstétrica na capital mineira. O texto ainda não prevê a criminalização deste tipo de violência, mas se mostra importante para disseminar o conhecimento sobre ele para a população – e, quem sabe, avançar para inserção no Código Penal.

Em março deste ano, quando o Projeto de Lei (PL) referente ao decreto desta semana foi votado no Plenário, o vereador Bruno Pedralva (PT) afirmou que o texto – de autoria de Iza Lourença (Psol) e da ex-vereadora Bella Gonçalves (Psol) – foi construído por “várias mãos”. “A construção central é polêmica, mas trata-se de boas práticas de saúde, da ciência no cuidado da mãe e do bebê”, disse ele.

A proposta, na época, recebeu cinco emendas e sete subemendas. Quatro das emendas e seis subemendas foram acolhidas pela Comissão de Mulheres na Câmara Municipal em junho. A supressão do artigo que relaciona as práticas entendidas como "violência obstétrica" e a proposta de não aplicação da lei a mulheres que interrompam voluntariamente a gestação foram rejeitadas.

Definição

Mas o que é a violência obstétrica? Nos regulamentos da nova lei, “entende-se por violência obstétrica a prática de ações que violem os direitos humanos, a autonomia e a privacidade da mulher, desrespeitem-na ou a ofendam física, verbal, moral ou psicologicamente, além da não adoção, pelos profissionais de saúde, das melhores práticas baseadas em evidências científicas durante a assistência obstétrica prestada no período do pré-natal, do parto, do puerpério ou em situação de perda gestacional ou de morte fetal”.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) já define a violência obstétrica como "apropriação do corpo da mulher e dos processos reprodutivos por profissionais de saúde, na forma de um tratamento desumanizado, medicação abusiva ou patologização dos processos naturais, reduzindo a autonomia da paciente e a capacidade de tomar suas próprias decisões livremente sobre seu corpo e sua sexualidade, o que tem consequências negativas em sua qualidade de vida".

"A violência obstétrica pode se manifestar por meio da violência verbal, física ou sexual e pela adoção de intervenções e procedimentos desnecessários e/ou sem evidências científicas. Afeta negativamente a qualidade de vida das mulheres, ocasionando abalos emocionais, traumas, depressão, dificuldade na vida sexual, entre outros", afirma Rogéria Werneck, médica ginecologista e obstetra, mestre e doutora em Saúde da Mulher pela UFMG e médica do Hospital das Clínicas da UFMG e Instituto Orizonti.

De acordo com a profissional, a violência obstétrica é praticada por quem realiza a assistência obstétrica, ou seja, médicos(as), enfermeiros(as), técnicos(as) em enfermagem, obstetrizes ou qualquer outro profissional que preste, em algum momento, esse tipo de assistência. E existem várias formas de o servidor de saúde ser prejudicial à mulher.

Tipos de violência obstétrica

A violência obstétrica pode ocorrer de várias formas, e nem todas são físicas, como se pode imaginar. Alguns dos exemplos mais comuns de violência obstétrica são: abuso físico, sexual ou verbal; qualquer tipo de discriminação; fazer um procedimento em necessidade e sem o consentimento da mulher; desrespeitar as decisões da gestante; não permitir acompanhante.

Esse tipo de violência atinge diretamente as pessoas gestantes e pode ocorrer durante a gestação, parto e pós-parto e se refere ao desrespeito à mulher, à sua autonomia, ao seu corpo e aos seus processos reprodutivos.

“Aconteceu recentemente com uma amiga minha. Ela tinha uma carta de interrupção de gravidez, e dois hospitais recusaram fazer o procedimento, mas ela continuou exigindo, até que pediram que ela voltasse no dia seguinte. Quando ela chegou, prepararam tudo para fazer a cirurgia e receber a criança, mas na hora da cirurgia, tiraram ela da sala porque chegou uma outra gestante, sem urgência, e ela precisou esperar por horas até ser atendida. Aí, então, temos os crimes contra a honra: difamação, injúria… não deixou de ser uma violência”, conta a advogada Jennifer Carvalho, integrante da Comissão de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG).

Histórico no Brasil

A violência obstétrica é mais comum do que se pensa. O levantamento “Nascer no Brasil”, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), de 2012, mostra que 30% das mulheres atendidas em hospitais privados sofrem violência obstétrica, enquanto no Sistema Único de Saúde (SUS), 45%. O dado, apesar de ter uma década, é o mais recente estudo divulgado sobre o tema.

No final de 2021, um caso emblemático no Brasil fez com que a pauta da violência obstétrica ganhasse mais força na mídia. A influenciadora Shantal Verdelho relatou ter sido vítima do médico Renato Kalil, que a teria xingado durante o parto de sua filha.

"Quando a gente assistia ao vídeo do parto, ele (Renato) me xingava o trabalho de parto inteiro. Ele fala: 'porr*, faz força. Filha da mãe, ela não faz força direito. Viadinha. Que ódio. Não se mexe, porr*'", conta Shantal no áudio.

Mais recentemente no estado mineiro, três mães que tiveram filhos na Santa Casa de Ouro Preto, na região Central de Minas Gerais, foram juntas à Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher relatar terem sofrido violência obstétrica durante o parto. Na ocasião, o Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres de Ouro Preto afirmou que foi a primeira vez que esse tipo de violência foi denunciado na cidade histórica, e a ação das mães poderia abrir portas para mais denúncias.

Apesar de ser reconhecida pela OMS, ainda não há uma lei que criminalize a violência obstétrica no Brasil. Ainda assim, em 2017, o governo federal lançou as “Diretrizes Nacionais de assistência ao Parto Normal”, um documento contendo uma série de diretrizes para humanizar o parto normal e reduzir o número de intervenções consideradas desnecessárias.

O projeto foi elaborado por um grupo multidisciplinar composto por médicos obstetras, médicos de família, clínicos gerais, neonatologista, anestesiologista e enfermeiras obstétricas.

Como combater

Existem alguns mecanismos que as mulheres podem recorrer para poder denunciar quando sofrerem violência obstétrica. A doula e jornalista Renata Regina listou as possibilidades mais acessadas e prontamente disponíveis:

  • Acionar a ouvidoria do próprio hospital
  • Acionar o Ministério Público ou a Defensoria Pública, dependendo do local de moradia da vítima
  • Acionar a Secretaria Municipal ou Estadual de Saúde
  • Acionar os conselhos regionais e federais de Medicina e/ou Enfermagem
  • Acionar a Ouvidoria da Agência Nacional de Saúde (ANS)
  • Caso ocorra na rede suplementar, encaminhar a denúncia para o 180, como uma forma de violência contra a mulher
  • Caso ocorra em instituições públicas de saúde, acionar o Disque Saúde 136
  • Acionamento judicial

“É importante que os profissionais que cometerem esse crime sejam responsabilizados. As mulheres que sofrerem com a violência obstétrica também podem procurar uma delegacia especializada e podem levar o caso para o Poder Judiciário, se for o caso”, explica Jennifer.

“Em regra, aquela que sofreu um dano em razão da prática de violência obstétrica, tem o prazo de três anos contados da data dos fatos para promover ação judicial buscando reparação”, complementa Rogéria.

Avanços a passos lentos

Existe uma frustração por ainda não haver lei que criminalize a violência obstétrica, já que as consequências – tanto físicas quanto psicológicas –, podem deixar marcas irreparáveis nas vítimas, enquanto não há garantia de punição para os responsáveis.

“Já existe jurisprudência que considera a violência obstétrica como uma das formas de violência contra as mulheres, mas ainda não tem uma legislação precisa que prevê punições e medidas contra as instituições e os profissionais que praticam violência obstétrica”, aponta Renata Regina.

“Qual é a consequência jurídica da violência obstétrica? Se já constasse como um crime no Código Penal, seria sensacional. A gente tem formas de pedir indenizações por danos materiais e morais, mas a criminalização é o Direito Penal e vem para coibir esse tipo de ameaça”, acrescenta Jennifer.

Ainda assim, a lei que busca promover o enfrentamento à violência obstétrica representa um grande avanço na luta pelos direitos da pessoa gestante.

“Antes de falar de violência, esse projeto de lei pede dignidade”, declarou a vereadora Cida Falabella (Psol), quando votou favoravelmente à aprovação da lei, ainda em votação em março deste ano.

Na mesma ocasião, a vereadora Iza Lourença destacou que a violência obstétrica precisa sair da invisibilidade. Para ela, é responsabilidade do poder público evitar a ocorrência de novos casos. “Esse tema não é fácil, mas é necessário pois existe uma violência contra a mulher que não pode ser jogada para debaixo do tapete”, afirmou.

Renata Regina ainda complementa que a promoção do enfrentamento é um caminho importante para a criminalização desse tipo de violência.

“Mesmo quando as legislações preveem medidas, ainda leva um tempo para serem implementadas. Ainda assim, todas as medidas que avancem no sentido de estarem promovendo um enfrentamento, trazendo o assunto para pauta, de modo a gerar mais conscientização, tanto para as mulheres que podem estar sofrendo essa violência quanto na assistência ao parto, é um avanço”, explica.

Para as especialistas, o intuito da nova lei é, principalmente, levar o tema da violência obstétrica para um público maior e, assim, ampliar a discussão para que possa se tornar parte de um movimento maior.

“Por enquanto, a melhor forma de começar a lutar [contra a violência obstétrica é divulgando, porque muitas pessoas não sabem que ela existe. Ao meu ver, o acesso à informação é o principal e precisa ter um investimento do município, ainda mais numa era digital em que a gente tem a tecnologia ao nosso favor”, diz a advogada.

“O principal é deixar esses grupos em alerta para que, primeiro, as mulheres possam identificar se há algo de errado e, neste caso, onde há a violência para que procurem ir atrás de alguma medida. E vamos avançando pouco a pouco para que se conforme, na prática, um enfrentamento e um avanço, inclusive, para outras legislações que coíbam a prática”, finaliza a doula.