A cozinheira tem um sonho: fazer o curso de gastronomia na prestigiada escola francesa le cordon bleu -  (crédito: jair amaral/em/d.a. press)

A cozinheira tem um sonho: fazer o curso de gastronomia na prestigiada escola francesa le cordon bleu

crédito: jair amaral/em/d.a. press

Na cozinha de Francisca Maria da Silva, conhecida com muito gosto por Xica da Silva, não podem faltar alho e cebola. Mas junto dos saborosos temperos, há mais dois ingredientes imprescindíveis, com a diferença de que não nascem da terra e sim do coração.

 


“Amor e bem-querer à vontade só fazem bem aos alimentos e à vida”, revela a mineira de 59 anos e dona de uma trajetória que, sem dúvida, daria um livro. Diante do comentário do repórter, ela sorri e pergunta, com bom humor: “Quer escrever?”

 

 

Então, mãos à obra, pois assunto é o que não falta aos dias da chef Xica da Silva, nascida na zona rural de Ipanema, na Região Leste de Minas, e residente em Ribeirão das Neves, na Grande BH. Mãe de Paula, Paloma e Karine e avó de Yasmin, Hinata e Lucas, a chef, empreendedora e ativista contra a violência às mulheres está cheia de planos, incluindo uma cozinha comunitária e solidária.


Prioridade aos orgânicos

 

Ouvindo as histórias, vendo sua intimidade com as panelas e presenciando seus projetos pessoais, vê-se que, para quem já provou do doce e do amargo, a confiança em dias melhores é sempre o melhor prato – preparado com o calor das emoções, temperado com afeto e finalizado com o talento das mãos.
Na cozinha de sua casa no Bairro Paraíso das Piabas, em Ribeirão das Neves, na Grande BH, a chef Xica da Silva apresenta temperos, ingredientes e um jeito todo próprio de preparar os alimentos. “Sempre procuro fazer comida de verdade, com elementos naturais. Assim fica bem melhor”, ensina a mulher nascida na localidade de Laranjeiras, no município de Ipanema.


As lembranças vão fluindo, enquanto a chef Xica da Silva, que se orgulha do nome e se diz fã da estrela do filme de Cacá Diegues (“Xica da Silva”, de 1976), a atriz Zezé Motta, tira do forno algumas fôrmas de bolo. O aroma é ótimo, invade os sentidos e abre o paladar. Depois de esperar esfriar um pouco e desenformar as quitandas, ela parte para a segunda etapa: decorar. E vai ditando a receita.


“Fiz aqui, hoje cedo, estas broas de fubá recheadas com goiabada e o bolo de limão siciliano com farinha de puba”, explica. Como culinária é cultura, vamos aprender o que é farinha de puba: produto feito com a massa da mandioca fermentada e peneirada. “É uma parte que se perde, mas não podemos desperdiçar. Se a pessoa não encontrar no supermercado a farinha de puba, pode usar a farinha branca”, orienta a especialista em doces e salgados, que aprendeu muito do que sabe lendo e colecionando o guia Sabores de Minas, publicado pelo Estado de Minas. “Tenho vários guardados.”


ACOLHIDA À MINEIRA

 

A segunda etapa será decorar o bolo, que Xica diz ser de extrema simplicidade: misturar o leite condensado e o caldo de um limão siciliano. Cortando uma fatia do bolo e oferecendo à equipe do EM, ela serve café quentinho recém-coado e suco de acerola do quintal. Tudo delicioso, aquecido pela acolhida à mineira. “Vou voltar a estudar, se Deus quiser! Quero terminar o curso de gastronomia, do qual cheguei a fazer três módulos”, conta com a alegria de quem conseguiu concluir o ensino fundamental aos 55 anos, fazer as provas do ensino médio aos 56 e ser aprovada no vestibular aos 57. “Estou sempre à procura de uma vida melhor, pois o que não nasce, a gente busca”.


Vítima de violência doméstica e disposta a apoiar outras mulheres, a chef, um retrato sem retoques da superação, coordena o Buffet Amigos da Xica, atua como conselheira do Conselho Nacional de Economia Solidária e integra a Executiva do Fórum Brasileiro de Economia Solidária.

 


A CRIAÇÃO DE UMA COZINHA COMUNITÁRIA

O caminho do presente ao futuro pode ser trilhado em questão de minutos. Depois de servir as fatias de bolo com café e suco de acerola, Xica da Silva fala dos seus projetos, e convida a equipe do EM para conhecer o terreno, não muito longe de casa, adquirido para fazer uma cozinha comunitária e solidária, reunindo mulheres vítimas de agressão. “Já tenho panelas grandes, pratos, talheres e outros utensílios”, conta com alegria.


Com 550 metros quadrados de área e dois cômodos já construídos – “falta cintar e bater a laje”, explica – , o terreno mostra que “em se plantando, tudo dá”. E brota, viceja, assim como a profusão de ora-pro-nóbis que toma conta da cerca. “Veja como está bonito! E é muito bom para saúde”, aponta a exuberância da planta. Mais adiante, Xica se surpreende com a abóbora-menina que nasceu, cresceu e apareceu quase sem ser vista, escondida pelas folhas.


“Ainda não sei quando esse sonho vai se tornar realidade”, observa a empreendedora ao olhar para o terreno onde pretende instalar a cozinha comunitária, dentro do projeto de economia solidária. Para o local, ela planeja uma horta convivendo com as bananeiras, pé de maracujá e de amora e outras frutíferas já existentes, além de plantas medicinais como boldo e melissa.


Logo após colher a abóbora-menina, Xica da Silva, que conquistou o diploma de chef de cozinha no Senac, em 1992, volta a falar sobre a importância da alimentação saudável. “Gosto de tudo natural, por isso faço ‘comida de verdade, com gosto de casa de vó e feita com o coração de mãe”, destaca a mulher “criada na roça” vendo a família cozinhar com o que tinha no quintal, sem lugar para os alimentos ultraprocessados.
Ao saborear o lombo recém-saído da panela, enfeitado com galhos de manjericão, a equipe do EM elogia o tempero e ganha um sorriso da chef Xica da Silva. “Até chegar aqui, a esse ponto foi um longo caminho”, diz com doçura antes de narrar episódios da sua trajetória de vida. A cada palavra, vê-se que ela soube fazer do limão mais azedo uma potente limonada. E saboreá-la, com orgulho. “Sou movida pela fé”, resume.

 

TONELADAS DE DESAFIOS

 

Xica nasceu em 10 de junho de 1964, numa casa de pau-a -pique em Laranjeiras, na zona rural de Ipanema. “Minha mãe, Juventina Maria da Silva, conhecida como Jove, se casou aos 14 anos. Foi lavradora, costureira, parteira e benzedeira. Meu pai, Gabriel Anselmo da Silva, além de lavrador era barbeiro. Nenhum dos dois sabia ler ou escrever, embora tivessem sabedoria. Minha mãe é meu exemplo de superação, nos ensinou que é preciso ser forte diante das adversidades. Veja só: ela faleceu em 1983, aos 49 anos, em pleno Dia das Mães.”

 

As três filhas de Xica da Silva têm o nome de Gabriela, homenagem ao avô Gabriel, que era lavrador na localidade de Laranjeiras. São elas Paula Gabriela, bacharel em direito, Paloma Gabriela, técnica em farmácia e estudante de gestão pública, e Karine Gabriela, estudante de secretariado e gestão financeira. Os netos são motivo de orgulho: Yasmin, de 14, “toca violino”, Lucas Gabriel, de 12 e Hinata, de 10.


Xica considera sua família “uma mistura de negro com puri”, numa referência ao povo indígena originário da Região Sudeste do país. “Meus pais falavam que o bisavô da minha mãe era índio, descendendo de um casal ‘pego no laço’ e domesticado. Puxei o lado do meu pai, que era negro. No meu documento, sou negra”, contou em depoimento à publicação “Mulheres, Negras e Gestoras: Porque Sim” (Série Sempre Vivas 2), organizado por Letícia Godinho e Renata Seidl.


Na infância, a menina viu o pai trabalhando nas lavouras. “Como meeiro de tudo que produzia, metade era do dono da terra. Já quando trabalhou na fazenda de uns japoneses, dividia: duas partes para o dono da terra e uma parte para nossa família. A gente plantava feijão, café, arroz. Não comprávamos muita coisa. Era um lugar de fartura, tinha galinha, porco e frutas”.


Assim, a meninada comia fruta no pé, enquanto dona Jove costurava e cozinhava, e caprichava nas quitandas e doces com rapadura. Como a família criava porco, era a mãe quem matava e limpava o animal, fazendo sabão com a banha. “Todos os dias, bem cedo, meus irmãos cozinhavam abóbora, inhame rosa e banana verde para alimentar os porcos. Parte desse cozido era o nosso café da manhã, adoçávamos com melaço e comíamos. Ainda hoje brinco: ‘Sou forte, porque fui tratada com comida dos porcos!’".

 

CÁRCERE PRIVADO POR UMA DÉCADA

 

Em 1971, quando Xica tinha sete anos, a família mudou para Ipatinga, no Vale do Aço. Na busca pela sobrevivência, trabalhou como babá e arrumadeira. “De todos os meus irmãos, fui a única que conseguiu estudar. Tenho boas recordações da escola. Gostava muito de ler romances – de Machado de Assis, Cora Coralina e Oswaldo França Júnior. Mais tarde, aos 18, veio morar em Belo Horizonte, onde trabalhou como faxineira e novamente arrumadeira. “Conheci pessoas boas, mas meu negócio era mesmo cozinhar, pois trazia comigo o conhecimento da atividade. E sempre mantendo a vontade de estudar gastronomia.”
A ocupação seguinte foi de “freezeira”, a cada dia abastecendo os freezers das casas. “Com isso, comecei a viajar para outras capitais. Conheço boa parte do Brasil, pois, com 23 anos, uma família me contratou como cozinheira.”


A vida seguia nesse ritmo até Xica, aos 24 anos, conhecer o futuro pai das três filhas. “Dele, que achava ser o grande amor da minha vida, só ficou isso de bom e meu diploma do Senac”. Silêncio de alguns segundos antes de dizer que ficou em cárcere privado durante 10 anos, sofrendo vários tipos de violência doméstica. “Só saía para fazer o curso, e ele me esperava na porta”.


PERDA DA VISÃO

 

Nessa relação de violência extrema, com espancamentos e um acidente de veículo na Lagoa da Pampulha, que resultaram em perda da visão de um olho e redução da visão do outro – “enxergo apenas 16%”, observa – Xica procurou ajuda. E, paradoxalmente, começou a ver a vida com outros olhos, conforme suas palavras. Em 1999, passou pelo Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Benvinda) e depois ficou abrigada na Casa de Acolhimento Sempre Viva, também em BH.


Separada do companheiro, começou a se virar do avesso para sustentar as três filhas vendendo seus produtos na Feira da Avenida Bernardo Monteiro, na Região Centro-Sul. “Comecei a ter autonomia financeira até formar o grupo Trem Bão e depois o Buffet Amigos da Xica, com mulheres vítimas de violência doméstica que não voltaram para os agressores.


Sem perder o bom humor, Xica da Silva está certa de que o céu é o limite. E o futuro está apenas no início. “Tenho o sonho de estudar no Le Cordon Bleu, a escola de culinária especializada em cozinha francesa.” 

 

RECEITAS DE XICA

 

De volta à casa, a chef começa a preparar o lombo de porco com molho de cebolas, também chamado de Pernil à la Xica. “Se for usar o pernil, usar sempre a parte traseira”, ensina. O aroma do alho misturado à cebola invade o ambiente, enquanto, com calma e segurança, Xica vai ditando a receita que mostramos a seguir.

1) Lombo de porco ao molho de cebolas ou Pernil à la Xica

- Ingredientes:

1,5 kg de cabeça de lombo ou pernil traseiro
5 litros de água
3 cebolas cortadas em pétalas
3 folhas de louro
4 dentes de alho, picadinhos
1 colher de sopa de sal
1 galho de manjericão (para enfeitar)

 

- Modo de fazer:

Colocar, numa panela grande, a carne com os temperos e os 5 litros de água. Deixar cozinhando até reduzir bem a água (cerca de 300 ml). Virar o lombo ou o pernil até que fique dourado dos dois lados, e a água reduza completamente. Após essa redução, adicionar uma cebola grande cortada em rodelas grossas. Tirar da panela, colocar numa travessa e enfeitar com galhos de manjericão.

 

2) Bolo de limão siciliano com farinha de puba

- Ingredientes:

3 ovos
125 ml de óleo
1 xícara de açúcar
1 pitada de sal
1 limão siciliano grande, cortado em pedacinhos, sem sementes
2 xícaras de farinha de puba (se não encontrar, pode usar farinha branca)
1 colher de fermento para bolo

Para a cobertura: uma lata de leite condensado e caldo de um limão siciliano.

 

- Modo de fazer:

 

Bater todos os ingredientes no liquidificador, com exceção da farinha e do fermento. Colocar a massa numa vasilha e adicionar a farinha e o fermento, misturando bem. Untar uma fôrma e levar ao forno na temperatura de 180 graus. Deixar esfriar e cobrir com a mistura de leite condensado e o caldo do limão.