Gravadora lança obras inéditas do acervo de Hermeto Pascoal
Projeto da Rocinante começa pelas flautas e prevê álbuns anuais, produzidos a partir de milhares de partituras deixadas pelo compositor, morto neste ano
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Aos 60 anos de idade, o alagoano Hermeto Pascoal compôs uma música por dia, ao longo de um ano, entre 1996 e 1997, como parte do projeto O Calendário do Som. A ideia era homenagear aniversariantes de cada data, liberando as obras sem direitos autorais, como um presente universal.
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O compositor e instrumentista morreu em setembro deste ano, aos 89 anos, vítima de fibrose pulmonar. Deixou ao menos 10 mil partituras, a maior parte inédita. Esse material começa agora a ser lançado pela gravadora Rocinante no projeto "A obra viva de Hermeto Pascoal", dedicado tanto a composições inéditas quanto a obras pouco exploradas de seu catálogo.
O primeiro volume é voltado às flautas e já está disponível nas plataformas digitais, com 19 faixas. O disco também ganhou edição em vinil, vendida por R$ 176 no site da gravadora. Fundador da Rocinante, Sylvio Fraga conta que Hermeto morreu quando o álbum já estava quase pronto. Faltava apenas dar nome a algumas músicas.
Partituras via Correio
A solução foi batizar as faixas ainda sem título com nomes descritivos, como “Duo de flautas”, “Quinteto de flautas” e por aí vai. Ex-integrante do grupo do músico, Jovino Santos Neto organiza o acervo. A digitalização das partituras ficou a cargo do mineiro Felipe José, que teve acesso ao material de forma incomum.
Felipe começou a trabalhar no arquivo de Hermeto em 2022, depois de alguns anos tentando encaminhar o assunto com a família do músico. Ex-violoncelista da Orquestra Itiberê, ele conta que recebeu partituras de presente durante a pandemia, quando Hermeto decidiu enviar composições pelo correio ao completar 85 anos. “Para mim, foi muito significativo. Ganhei vinte e tantas músicas que chegaram pelo correio”, lembra.
O gesto, porém, também acendeu um alerta. “Fiquei muito agradecido, mas também muito preocupado, porque vi que essas partituras estavam sendo distribuídas sem ter um registro adequado”, comenta. Em 2022, Felipe passou alguns dias na casa do compositor digitalizando o material. Desde então, voltou outras vezes e também trouxe partituras e fotografias para Minas Gerais, onde segue o trabalho.
A digitalização segue em andamento, sem previsão de término. “A obra do Hermeto é muito grande. Mesmo eu, que já estou há alguns anos mexendo nas coisas dele, não consigo medir o tamanho. Sei que já digitalizei muita coisa, mas ainda falta. Não consigo dizer quanto falta. Pode ser que falte muito”, afirma.
Diário de composições
Segundo Felipe, após O Calendário do Som, Hermeto manteve uma espécie de diário composicional. Ele costumava dizer que fazia uma música por dia, mas a produção era ainda maior.
“Confirmo, porque mexi em muitas coisas dele, e às vezes tem três, quatro, cinco músicas no mesmo dia”, relata. A escrita diária seguiu até meados do ano passado, quando o músico foi internado e, após colocar um marca-passo, ficou com o braço fragilizado e parou de escrever. “Ouso dizer que é o compositor mais prolífico da história. Em termos de quantidade, acho que ninguém escreveu mais compassos de música do que ele”, diz Felipe.
A decisão de começar pelas flautas se deve ao fato de o instrumento ser central na vida de Hermeto Pascoal. Segundo Sylvio Fraga, o caminho pareceu óbvio pela abundância de peças. “A gente não gravou todas. Vão ter outras”, diz.
As composições do recém-lançado disco foram feitas entre 1982 e 1985 e dialogam com trabalhos anteriores do artista, especialmente do período do disco “Cérebro magnético”. “Era uma criação de tempo integral, tocando, criando e fazendo”, lembra.
A escolha dos instrumentistas ficou a cargo de Bernardo Ramos, responsável pela direção e produção musical. Segundo Sylvio, trata-se de um disco construído a partir de muitos ensaios e de criação coletiva. Entre os intérpretes estão Aline Goncalves, Andrea Ernest Dias, Carlos Malta, Eduardo Neves e Marcelo Martins.
Para Felipe José, a dimensão do legado ainda está longe de ser totalmente compreendida. Ele diz ainda que existe uma história da música antes e depois de Hermeto. “Hermeto não está mais entre nós, mas a obra dele certamente vai estar viva e ainda vai florescer muito. Ainda é cedo para estimar a quantidade e para dizer quem é Hermeto Pascoal. Leva até algumas gerações para cair a ficha da envergadura da música dele.”
Também chama a atenção o modo como Hermeto Pascoal construiu sua obra. Autodidata, sem formação acadêmica e com limitações visuais que o impediam de ler com clareza o que escrevia, ele desenvolveu soluções próprias para dar conta de uma produção intensa. O artista registrava a linha melódica e indicava a harmonia por meio de códigos próprios, sem recorrer à nomenclatura tradicional dos acordes.
A equipe da Rocinante já prepara o próximo volume, com a expectativa de lançar um disco por ano, destrinchando aos poucos um repertório que parece inesgotável.
“OBRA VIVA DE HERMETO PASCOAL – VOL. 1: FLAUTAS”
Disco com 19 partituras de Hermeto Pascoal, interpretadas por Aline Gonçalves, Andrea Ernest Dias, Carlos Malta, Eduardo Neves, Marcelo Galter, Marcelo Martins e Rafael Rocha
Gravadora Rocinante
Disponível nas plataformas digitais e também à venda em vinil por R$ 176